Republicação

Resenha: “American way of war: ‘guerra cirúrgica’ e o emprego de drones armados…”, de Alcides Peron

Veículo aéreo não tripulado RQ-4 Global Hawk realiza testes sobre a Estação Aérea Naval de Patuxent River, Maryland,em 12 jun. 2012 (Crédito: Marinha dos EUA/Erik Hildebrandt/Flickr)

Por Ana Penido, para Revista Brasileira De Estudos De Defesa* [Republicação, Resenha]

American way of war: “guerra cirúrgica” e o emprego de drones armados em conflitos internacionais | Amazon.com.brOs veículos aéreos não tripulados (Vants, popularmente chamados de drones) se massificaram. São comuns em eventos culturais, manifestações, produção agrícola, fiscalização ambiental, e muito mais. As imagens aéreas são bonitas, e brincam com o desejo humano de voar.

O livro American Way of War: “guerra cirúrgica” e o emprego de drones armados em conflitos internacionais, de Alcides Peron, lançado em 2019 pela Editora Appris, discute o lado B do emprego de drones. Carregando armamentos, eles foram amplamente usados em conflitos internacionais pelos EUA sob a égide de “guerras cirúrgicas”, um desdobramento do que os estadunidenses consideram a Revolução nos Assuntos Militares. O livro atua na fronteira entre, de um lado, o debate científico e tecnológico na guerra e, de outro, os impactos sociais do emprego desses artefatos.

Os casos analisados são eminentemente militares — Golfo, Síria, Afeganistão e Iraque —, mas a obra traz ponderações úteis para pensar o emprego de drones na segurança pública, no caso brasileiro, ainda não dotados de armamentos. Inicialmente usados para a vigilância e inteligência, os drones passaram a carregar armamentos posteriormente. Seu emprego militar, nesse caso, ocorre em assassinatos seletivos (alvos identificados pela Inteligência são marcados e um míssil guiado é lançado, com a autorização da cadeia de comando), ou por sinais (alvos não conhecidos são selecionados pelos operadores dos drones, instruídos a ter “quase certeza” de que os alvos constituem ameaças segundo comportamentos, ou sinais emitidos), ambos extrajudiciais. Essas identificações são bastante subjetivas e influenciadas por preconceitos culturais e religiosos.

Peron alerta que as duas modalidades não estão em concordância com o direito internacional humanitário, seja quanto ao seu fim, seja quanto aos meios que emprega, pois não respeita a proporcionalidade dos armamentos do conflito e não permite a distinção adequada entre civis e militares. Além disso, os operadores dos drones permanecem em território estadunidenses e sujeitos apenas às suas leis, conseguindo com isso burlar as normas internacionais. Ocorre uma inversão de risco, na qual os não combatentes correm mais riscos que os combatentes de se tornarem vítimas do conflito, estejam estes no mesmo território ou não. Os números levantados pelo autor confirmam sua crítica. Embora o conceito de “guerra cirúrgica” prometa guerras precisas e seletivas, com poucas vítimas, de 2004 a 2014, foram 370 ataques estadunidenses com mais de 3000 vítimas. Desse total, 22% eram civis, inclusive crianças. Apenas 50 eram líderes identificados e classificados pelos EUA como elimináveis. Por outro lado, as baixas estadunidenses de fato diminuíram enormemente, saindo de 58 mil, no Vietnã, para 4 mil, no Iraque.

Com o aumento da capacidade destrutiva dos materiais bélicos, cujo auge é a bomba nuclear, a doutrina militar precisou mudar, e foram desenvolvidos artefatos que possibilitassem o afastamento relativo do conflito (como os sensores de visão noturna) e absoluto em termos físicos (Vants). Nos dois casos, o inimigo desaparece na condição de sinal eletrônico, pixels, reproduções gráficas, etc. Desde a Estratégia Nacional de Segurança de 2002 (George W. Bush), os EUA inovaram com a doutrina da guerra preventiva em que se reafirmam como soberano global com poderes para atacar unilateralmente quem consideram inimigo. A eficácia passou a ser perseguida em termos de poder de destruição e na capacidade de levar adiante várias campanhas simultâneas em diferentes territórios, sem necessidade de desdobrar forças oficiais no terreno. Os Vants se somam a esse conjunto de mudanças que alteram a percepção de tempo e espaço na guerra. Nos casos apresentados por Peron, não existe um campo de batalha, e as ações ocorrem dispersas ao redor do globo; não há paz e guerra, mas um continuum de tempo intermediário, no qual, embora a guerra seja mais rápida, alarga-se sua duração. Os drones também impactaram a hierarquia, tornando-a descentralizada, e aumentaram a importância das comunicações. O sistema de comando, controle e informações não é mais o mesmo da era industrial. A camada de apoio logístico e operacional permanece, mas o operador na ponta ganha em poder de decisão e, ao mesmo tempo, na desconexão emocional, pois o distanciamento aumenta a frieza estratégica nas ações. Os operadores atuam distantes do terreno, e o monitoram por máquinas ininterruptamente. Os sentidos se atrofiam, sendo substituídos pela confiança absoluta nas máquinas.

Esses “guerreiros de cubículo”, na expressão de Peron, tomam decisões de vida e morte sem colocar a própria vida em jogo, portanto, não sentem medo. Com isso, ocorre um desengajamento moral que facilita a desumanização do inimigo. Além disso, cada disparo é sempre emitido por duas pessoas: o operador do drone e o operador dos sensores, com ambos compartilhando reações de aprovação mútua e com o grupo, como nos pelotões de fuzilamento. Seu treinamento é mais rápido e mais barato, e hoje a Força Aérea estadunidense treina mais pilotos de VANTS que de caças. Os operadores continuam sujeitos à disciplina militar, mas suas queixas são operacionais (típicas de empresas, como a ergonomia das cadeiras e jornada de trabalho), e não combatentes.

Em suma, os drones são mais baratos, mais fáceis de pilotar, mais difíceis de serem alvejados e não têm tripulação, e ainda assim podem carregar a mesma carga de mísseis que um helicóptero Apache. Servem para reconhecimento, vigilância, Inteligência e ataque. Um avanço científico e tecnológico inestimável. Escrevo esta resenha enquanto se desdobra no ambiente internacional uma guerra entre a Rússia e a OTAN, no terreno ucraniano, e o genocídio da população palestina pelo Estado de Israel[i], em Gaza. No contexto doméstico, recém saímos de quatro anos de governo belicoso, belicista e violento, período em que ocorreu o aumento do militarismo e da militarização no Brasil. São três contextos distintos para o uso de drones, com impactos que se aproximam mais ou menos dos casos analisados por Peron, o que não diminui a relevância da discussão proposta pelo autor.

Por fim, o livro leva à reflexão de que o complexo industrial-militar-midiático dos EUA tem tido sucesso em formar sociedades globais profundamente indiferentes à violência de guerra. Apagam-se temas importantes, ou a sociedade é inundada por superinformação, verdadeiras ou não. Tomando emprestada a imagem do autor, a guerra tornou-se virtual não apenas porque ocorre via telas de computadores, mas porque envolve a sociedade como um espectador esportivo. Só há sangue, suor e lágrimas de um dos lados, e parece tudo bem.

[i] País grande produtor de veículos aéreos não tripulados, desenvolvidos e testados no terreno palestino, e comprados em larga escala pelo Brasil.

 

* Ana Penido é doutora em Relações Internacionais pelo Programa San Tiago Dantas (Unesp-Unicamp-PUC-SP). Bolsista Fapesp de pós-doutorado em Ciência Política na Unicamp. Pesquisadora do Grupo de Estudos em Defesa e Segurança Internacional (Gedes) e do Instituto Tricontinental. Contato: anapenido@gmail.com.

** Texto publicado originalmente na Revista Brasileira de Estudos de Defesa, v. 10, n. 1, 2024, e republicado no OPEU com autorização da autora. Esta resenha não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU.

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