Internacional

Casa em chamas: a saída do Afeganistão na estratégia dos EUA para China

Policial conduz bombeiro em meio a incêndio causado pela explosão de uma bomba sob  um tanque de combustível da Otan na estrada Jalalabad-Cabul, no leste da capital do Afeganistão, Cabul, em 27 abr. 2011 (Crédito: Rahmat Gul/AP)

Por Mateus de Paula Narciso Rocha*

Para incontáveis analistas, a saída dos Estados Unidos do Afeganistão é uma derrota monumental, similar àquela do Vietnã (1975), ou mesmo à “perda” da China (1949) e do Irã (1979). Outros vão além e afirmam que a vitória do Talibã é o começo do fim da Pax Americana: o Afeganistão seria o túmulo de mais um império.

É inegável que a implementação da saída foi desastrosa, como comprovam as cenas de horror do aeroporto internacional de Cabul e o atentado terrorista que matou 60 afegãos e 13 soldados americanos. Os erros de planejamento foram graves. Dias antes da queda de Cabul, a Inteligência americana considerava que o regime afegão resistiria por pelo menos um mês e, somente horas antes da tomada da capital, foi dada a ordem para destruir os documentos da embaixada dos EUA. Por duas semanas, o processo de retirada no aeroporto de Cabul dependeu da boa vontade do Talibã.

Neste episódio do Diálogos INEU, de 26 ago. 2021, a pesquisadora Neusa Maria Bojikian (INCT-INEU) conversa com o professor Reginaldo Nasser (PUC-SP) e com o doutorando Gustavo Oliveira (PPGRI-Unesp, Unicamp, PUC-SP) sobre a crise do Afeganistão

O projeto original da guerra também fracassou. A invasão do Afeganistão em 2001, após o 11 de Setembro, foi feita para defenestrar o Talibã, por seus elos com a Al-Qaeda de Osama bin Laden. Os EUA pretendiam desbaratar a rede de terrorismo da Al-Qaeda, propiciar estabilidade para negócios na região e aumentar sua presença militar no coração da Eurásia. Vinte anos depois, a mudança de regime foi revertida e cresce a perspectiva de que o Afeganistão volte a ser um porto seguro para quem adere à tática do terror.

Não é surpreendente que o público estadunidense, que em sua maioria é favorável ao fim da guerra, tenha percebido negativamente a ação comandada pelo democrata Joe Biden. Os republicanos, vendo o “animal ferido”, já ensaiam o bote, ainda que eles sejam os principais artífices da invasão e da retirada – relembrando que, em política eleitoral, mais importante do que coerência é consequência.

Organizando a derrota

Isso é, no entanto, apenas uma parte da história. A retirada estadunidense é muito diferente da saída soviética do Afeganistão em 1989. Ela não envolve um país desgastado que decide abandonar a guerra e fazer uma retração global em decorrência da incapacidade de arcar com seus custos. Como dito em outra pesquisa, não há mudança radical no poder estrutural: os EUA seguem soberanos nos campos militar, financeiro, tecnológico, cultural, universitário e científico, assim como em termos de mercado de consumo.

A própria vitória do Talibã não foi inesperada. O governo de Joe Biden e o de seu antecessor, o republicano Donald Trump, estavam cientes de que o desfecho da retirada militar dificilmente seria outro. Tanto é assim que, em 2018, a Casa Branca requisitou ao Paquistão a libertação do líder talibã Abdul Baradar para negociar os termos de saída. Em 2020, Zalmay Khalilzad, o enviado especial dos EUA para o Afeganistão, e Baradar firmaram o acordo EUA-Talibã, o Acordo de Doha.

Jolting Truths - Pakistan: July 2020

Acordo EUA-Talibã é firmado no Catar, em 29 fev. de 2020. Na foto, Khalilzad, à esquerda, aperta a mão de Baradar (Crédito: Ibraheem al Omari/Reuters)

Nesse pacto, os EUA se comprometiam a sair do Afeganistão até maio de 2021, e o Talibã impediria quaisquer de seus membros, ou outros grupos, como a Al-Qaeda, de usar o Afeganistão para ameaçar a segurança dos Estados Unidos e de seus aliados. Tacitamente, os EUA reconheciam a vitória do grupo, como revela a demanda de que o Talibã não emitisse “passaportes, ou permissões de viagem”, para quem ameaçasse a segurança dos EUA e de seus parceiros. O núcleo do acordo é simbólico: a proibição do terrorismo não foi completa, mas seletiva (a depender do alvo), e não há qualquer compromisso em relação aos direitos humanos dentro do Afeganistão.

Estratégia de transferência de custos e blowback anti-China

A retirada americana foi concebida estrategicamente. Em fevereiro de 2021, foi criada uma força-tarefa no Pentágono para determinar a estratégia adequada à competição de longo prazo contra a China, com a atribuição de reavaliar a estrutura de força dos EUA na Ásia. Foi somente em abril, com a proximidade da data-limite do Acordo de Doha, que Biden confirmou o fim da guerra, ainda que adiasse, para a revolta dos talibãs, a data de saída para o simbólico 11 de setembro de 2021.

Essa força-tarefa foi liderada por Ely Ratner, principal estrategista do Pentágono em relação à região Indo-Pacífico. Auxiliar direto de Biden no governo Barack Obama, Ratner é especialista em China e defensor de uma abordagem competitiva contra Pequim. É um analista influente que, antes de voltar ao poder, sugeriu que a guerra comercial contra a China seria mais eficaz se fosse multilateral e pontuou que os EUA têm fundações robustas de poder, mas deveriam tornar sua economia doméstica ainda mais competitiva perante o gigante asiático. Os dois pontos estão presentes na agenda anti-China de Biden: as tarifas de Trump perduram, a despeito das críticas de empresários, e foi aprovado o gigantesco pacote de infraestrutura que visa a aumentar a competitividade interna dos EUA.

Em 2018, enquanto ocorriam os debates no governo Trump sobre a saída do Afeganistão, Ratner também publicizou sua estratégia de burden-shifting (transferência de fardo) que comporia a resposta dos Estados Unidos ao projeto chinês da Nova Rota da Seda. A ideia é promover a transferência forçada de custos para a China: os EUA deveriam reduzir unilateralmente sua presença em áreas de segurança nas quais seus custos são elevados e em que a China tem crescente interesse na estabilidade para forçar a própria China a preencher o vácuo. Em outras palavras, os EUA ofereciam serviços de segurança, de polícia, em regiões nas quais é a China – vista como um carona (free rider) – quem deveria ter maior interesse na estabilidade e, logo, deveria pagar para obtê-la, fosse no plano econômico, diplomático, ou militar. Ainda que difundida em 2018, a ideia está parcialmente subjacente em um relatório da RAND, de 2014, assinado por Ratner e por outros dois estrategistas experientes, Andrew Scobell e Michael Beckley.

O fundamento da ideia de Ratner sobre a transferência de fardo é um diagnóstico lançado em outro texto. Em 2010, Ratner analisou cuidadosamente as várias ameaças internacionais enfrentadas pela China, como terrorismo, dependência comercial de Estados fracos e possível ascensão de governos anti-China. Ele observou que a expansão dos interesses econômicos da China carrega demandas políticas conflitivas nos países receptores dos investimentos. Isso conduziria a China a sofrer o efeito blowback experimentado pelos Estados Unidos tanto na Revolução Iraniana (1979), de marcante “antiamericanismo”, devido ao apoio da Casa Branca ao ditador Reza Pahlavi, quanto no 11 de Setembro, em decorrência da revolta dos extremistas sunitas com a presença militar dos EUA na Arábia Saudita após a Primeira Guerra do Golfo.

Para Ratner, que na época era um pesquisador, e não um formulador, a história dos EUA é o presságio do futuro chinês e, se os EUA pretendem conter a China, deveriam dedicar menos tempo tentando entender as intenções chinesas e mais tempo tentando afetar o ambiente de ameaças internacionais que constrangem o comportamento chinês. Isto é, deveriam fomentar o blowback anti-China, um ponto que Ratner apenas sugere, mas que deixa para ser discutido a portas fechadas (behind closed doors). O recente golpe na Guiné – principal exportador de bauxita para a China –, que foi acompanhado por uma rara reação pública da China, parece justamente um episódio de blowback anti-China.

Nova Rota da Seda e instabilidade no Afeganistão

A Ásia Central e, sobretudo, o Afeganistão são explicitamente o objeto da ideia burden-shifting, de Ratner. A China tem crescente interesse econômico na região, e dois grandes projetos, de longo prazo, da Nova Rota da Seda contornam com proximidade o Afeganistão. No Paquistão, em paralelo à fronteira afegão-paquistanesa, está sendo construído desde 2013 o Corredor Econômico China-Paquistão, que sai da província chinesa de Xinjiang e chega ao porto paquistanês de Gwadar. No Turcomenistão, também em paralelo à fronteira do país com o Afeganistão, passará o Corredor China-Ásia Central-Ásia Ocidental. Ambos os projetos propiciam ganhos econômicos e estratégicos para Pequim, reduzindo sua dependência do transporte marítimo, possibilitando o acesso a recursos estratégicos e criando oportunidades econômicas para suas empresas.

Batalha. Veículos blindados franceses se dirigem à cena do combate em Surobi, no leste afegão

Mapa do Afeganistão (Crédito: Rafiq Maqbool/Associated Press)

Esses projetos carregam, porém, riscos significativos, em especial pela fragilidade econômica e política dos países da região. País sem costa marítima, o Afeganistão tem uma das piores economias do mundo, é cravado por conflitos tribais e por “guerras por procuração” regionais e globais, sendo – por sua topografia, economia e distribuição étnica – um país praticamente ingovernável. Na década de 1990 – quando ocorreu a Guerra Civil, a vitória do Talibã e o uso do solo afegão para treinamento da Al-Qaeda –, os estrategistas americanos consideravam o país um “exportador de instabilidade para a região”. Com o 11 de setembro de 2001, a instabilidade se tornou intolerável para Washington. Com isso, prevaleceu o grupo defensor da mudança de regime (regime change).

Curiosamente, sem a presença dos EUA, o risco de um blowback anti-China aumenta, e os grupos terroristas procurarão novos alvos, que podem ser a própria China, ou governos da região com os quais a China tem importantes negócios, como o Paquistão. Os projetos chineses que contornam o Afeganistão já sofrem com a ação terrorista. O atual líder da Al-Qaeda, Ayman al-Zawahiri, não só já havia colocado a China no radar, classificando-a como um “ocupador ateísta”, como louva o Movimento Islâmico do Turquestão Oriental. Este último pratica o terrorismo na província chinesa de Xinjiang com intenções separatistas. E, ainda que a fronteira entre China e Afeganistão seja pequena e bem monitorada, a vitória dos extremistas sunitas do Talibã também gera um “efeito exemplo” para tais grupos.

Pragmatismo americano

Um dia após a queda de Cabul, ressoando as ideias de Ratner, Biden afirmou: “Nossos reais competidores – China e Rússia – adorariam, acima de tudo, que os Estados Unidos continuassem a canalizar bilhões de dólares em recursos e atenção para estabilizar indefinidamente o Afeganistão”. Em outras palavras, duas décadas após os atentados às torres gêmeas, a Casa Branca volta a tolerar a instabilidade no Afeganistão, afinal, hoje seu maior prejudicado tende a ser o principal adversário de Washington, a China.

Desse modo, a mission accomplished (“missão cumprida”) de Biden não quer dizer que o projeto original da guerra foi atingido. Não foi. O que sugere é que o mundo é outro – redesenhado pela Nova Rota da Seda e pela acelerada ascensão da China – e que o projeto de George W. Bush é menos funcional perante os novos imperativos estratégicos. Se o Plano A se mostrou caro, irrealista e, ainda, o mundo mudou; então, é a hora do Plano B.

Aqui, cabe lembrar que não é apenas a China que adota o pragmatismo em sua política exterior. Muitos esquecem que o pragmatismo nasceu nos Estados Unidos e é uma corrente muito influente na política externa americana. Várias vezes o que parece ser “dogmatismo” de Washington é tão-somente a forma pública, com a qual são encobertos seus interesses pragmáticos, como demonstra a história da política dos Estados Unidos para a China. A reunião pragmática do ministro chinês das Relações Exteriores, Wang Yi, com membros do Talibã ocorreu em meio aos vários encontros das autoridades americanas com representantes deste mesmo grupo. Trata-se, antes de tudo, de um movimento defensivo de Pequim, que tinha negócios com o antigo regime afegão e precisou se adaptar, em vista da retirada militar americana, da vitória talibã, do Acordo de Doha e das ameaças terroristas à China.

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Encontro entre Wang Yi e o chefe da comissão política afegão-talibã, mulá Abdul Ghani Baradar, em Tianjin, em 28 jul. 2021 (Fonte: Ministério das Relações Exteriores da China)

Redistribuição dos investimentos

Além de “libertar a fera”, a retirada do Afeganistão permite que Washington poupe seus recursos e reposicione seus investimentos econômicos, diplomáticos e militares. Como já anunciava a estratégia de defesa dos Estados Unidos do governo Trump, não é mais o terrorismo, mas a competição interestatal, sobretudo com a China, a principal ameaça aos EUA. Nesse sentido, em 2020, o estrategista republicano Robert Blackwill prescreveu que os Estados Unidos deveriam reduzir seus recursos militares na Europa e no Oriente Médio para aumentar significativamente a projeção de poder marítima e aérea na Ásia-Pacífico: Japão, Coreia do Sul, Índia e Sudeste Asiático. epercutindo essa ideia, Biden justificou em julho a saída do Afeganistão: “Precisamos nos concentrar em elevar as forças centrais dos Estados Unidos para encarar a competição estratégica com a China e com as outras nações que vão realmente determinar nosso futuro”.

Enfim, não há dúvida de que a saída do Afeganistão corrói a aura excepcionalista americana, mas essa saída não corresponde à imagem do fraco exaurido. Uma imagem melhor é a do investidor com uma ampla carteira de investimentos que abandona um deles para depositar seus recursos em outros lugares. Esse projeto descartado tem, porém, uma peculiaridade conveniente: é uma casa tomada pelo fogo, que pode ser ignorada por quem está geograficamente distante, mas não pelos seus vizinhos. Em política internacional, é dito que não há uma polícia para quem ligar quando ocorre uma agressão estatal. Pois, também não há bombeiros para serem chamados quando ocorre um “incêndio” – um país exportando instabilidade. Ou os vizinhos se arriscam a conter o fogo, ou ele devastará seus interesses.

 

* Mateus de Paula Narciso Rocha é mestre em Relações Internacionais pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU) e doutorando em Ciências Sociais na Universidade Estadual Paulista (Unesp). É pesquisador do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Estudos sobre os Estados Unidos (INCT-INEU). Estuda a política exterior dos Estados Unidos para a China. Contato: mateusdepaula@outlook.com. Twitter: https://twitter.com/MPNRocha.

** Recebido em 7 set. 2021. Este Informe não reflete, necessariamente, a opinião do Opeu, ou do INCT-INEU.

 

Edição e revisão final: Tatiana Teixeira.

Assessora de Imprensa do OPEU e do INCT-INEU, editora das Newsletters OPEU e Diálogos INEU e editora de conteúdo audiovisual: Tatiana Carlotti. Contato: tcarlotti@gmail.com.

 

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