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Uma nova Guerra à Pobreza? Governo Biden e o Plano ‘Build Back Better’

Os presidentes Lyndon Johnson e Joe Biden (Crédito: Ilustração de Elizabeth Brockway/The Daily Beast/Getty)

Panorama EUA_OPEU_Uma nova Guerra a Pobreza Governo Biden e o Plano Build Back Better v11 n6 Jun 2021

Por Barbara Mitchell*

Em 1964, o presidente Lyndon B. Johnson declarou Guerra à Pobreza nos Estados Unidos da América. Naquele ano, o país tentava retomar um ritmo de crescimento alto, perto dos 6%, e reduzir o desemprego ao nível do “pleno emprego”, por volta de 4%. Naquele momento, os EUA cresciam em média 5%, e o desemprego era de 5,2%. A pobreza era vista como uma antítese para a “nação da afluência”, e o governo pretendia gastar inicialmente US$ 1 bilhão no primeiro ano. A meta era eliminar a pobreza, ou a maior parte dela, em uma década. Passados 57 anos, o também democrata Joe Biden anunciou um “Plano de Resgate”, de US$ 1,9 trilhão, em meio à crise gerada pelo novo coronavírus. Com o desemprego atingindo 14,7% em abril de 2020, a “América” de Biden parece, no entanto, diferente da herdada por Johnson após a morte de John F. Kennedy, em 1963.

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A criação da linha oficial da pobreza se deu apenas no ano de 1963. A base do cálculo considerava a capacidade de compra de alimentos por cada família. Com isso, foram definidos como pobres as famílias (com quatro membros) que tivessem uma renda inferior a US$ 3 mil anuais, uma média de 1/5 da população em 1964. Apesar de contestada por intelectuais, o modelo recém-definido na presidência de JFK foi utilizado como base para boa parte das políticas públicas antipobreza e se mantém até os dias atuais. Kennedy não tinha grande interesse em promover políticas antipobreza, especialmente se estas não considerassem também a classe média e a trabalhadora sindicalizada — que, naquela época, ainda sentia os efeitos positivos da rede de bem-estar criada com o New Deal de Roosevelt e que fora incrementada no cenário do pós-Segunda Guerra.

Entre as décadas de 1950 e 1960, a narrativa vigente entre economistas e o governo era, majoritariamente, a de sucesso internacional e progresso nacional. Ao mesmo tempo, cresciam as denúncias sobre a profundidade e a permanência da pobreza nos Estados Unidos. Intelectuais progressistas, de esquerda e movimentos sociais, principalmente de defesa dos direitos civis, encabeçavam o núcleo denunciante. Entre eles, destacaram-se o livro do cientista político Michael Harrington, A outra América: pobreza nos Estados Unidos, e a grandiosa manifestação da Marcha de Washington por Trabalho e Liberdade.

No livro publicado em 1962, Harrington explorou as características da pobreza que afetava em torno de 40 milhões de pessoas: assolava desproporcionalmente minorias, trabalhadores não sindicalizados e os trabalhadores do campo. O texto se tornou um best-seller e contribuiu para “balançar” a falsa ideia de que os Estados Unidos haviam superado a pobreza em massa.

Naquele mesmo período, aconteceu uma das principais manifestações pelos direitos civis: A Marcha pelo Trabalho e Liberdade, de 1963. Geralmente lembrada pelo discurso “I Have a Dream”, de Martin Luther King, essa marcha reuniu diversas organizações afro-americanas (SNCC, CORE, SCLC, NAACP) que reivindicavam o pleno emprego no país. A contradição entre os Estados Unidos se afirmarem a nação mais próspera e democrática do mundo, enquanto os afro-americanos eram excluídos social e economicamente daquela sociedade, já era denunciada há tempos por esses grupos, mas ganhou popularidade com o livro de Harrington.

O líder estadunidense dos direitos civis Martin Luther King Jr. se dirige à multidão no Lincoln Memorial, em Washington, D.C., onde fez seu histórico discurso “I Have a Dream”, em 28 ago. 1963, na Marcha pelo Trabalho e pela Liberdade (Crédito: AFP/Getty Images)

Ainda no governo John Kennedy, a equipe do Conselho Econômico usou o texto de Harrington e a pressão dos movimentos sociais para dar maior espaço na discussão do problema da pobreza. Mas foi somente com a morte de Kennedy e com sua substituição pelo então vice-presidente, Lyndon B. Johnson, que a ação antipobreza se tornou o centro da política interna nacional. A “Guerra à Pobreza” foi criada como parte do projeto da “Grande Sociedade”. Tinha como propósito aliar esforços dos governos federal e estaduais, de organizações locais e de grupos de base no lançamento de uma grande iniciativa para a luta contra a pobreza e pelos direitos civis.

A Guerra à Pobreza de Lyndon Johnson

A iniciativa foi oficializada com a aprovação do Economic Opportunity Act (Ato de Oportunidade Econômica) e a criação de uma nova agência independente, o Office of Economic Opportunity (Escritório de Oportunidade Econômica), com a direção de Robert Sargent Shriver, que também era diretor dos Corpos da Paz. Criou-se, assim, um projeto nacional em larga escala. Quanto aos programas, o Ato inseriu seis principais divisões: os Youth Programs, divididos entre o Job Corps, os Work-Training Programs e os Work-Study Programs; os Programas de Ação Comunitária (CAP), com particularidades para o campo e a cidade, projetos de Educação Básica para Adultos e o Voluntary Assistance Program for Needy Children; os Programas Especiais para o Combate da Pobreza em Áreas Rurais; Incentivos ao Investimento e Empregos, buscando fomentar as parcerias público-privadas; Programas de Experiência Profissional, utilizando programas autorizados pelo Manpower Development and Training Act; e o VISTA, Volunteers in Service to America, em seção separada, por prever o recrutamento e treinamento a partir do diretor da agência.

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Primeiro centro de treinamento do programa Job Corps no Catoctin Mountain Park, em Maryland, em fev, 1965 (Crédito: Library of Congress)

Dois dos principais programas, o Job Corps e o Programa de Ação Comunitária, previam, respectivamente, “preparar para as responsabilidades da cidadania e aumentar a empregabilidade de jovens, homens e mulheres, entre 16 e 21 anos, ao criar, em centros residenciais urbanos e rurais, experiências úteis educacionais, de treinamento vocacional e de trabalho” e “garantir o estímulo e o incentivo para comunidades urbanas e rurais mobilizarem seus recursos para combater a pobreza através do programa de ação comunitária”. Era a ideia de garantia de cidadania, ou de ampliação da cidadania, com diminuição da pobreza e melhora da qualidade de vida.

O Job Corps visava a corrigir a exclusão histórica do exercício da cidadania e no acesso a direitos democráticos, como educação e emprego, ao treinar os participantes para o mercado de trabalho, oportunidades de primeiro emprego e outras formações profissionais. Era um programa que defendia a igualdade de oportunidades como sinônimo de dignidade social. Também era uma forma de reforçar que a Guerra à Pobreza não era caridade, mas sim um investimento. O investimento precisava trazer resultados importantes e, de preferência, transformar mais pessoas em novos consumidores.

Já o Programa de Ação Comunitária foi a principal janela, dentro da Guerra à Pobreza, para observar os reflexos das disputas entre movimentos sociais e o governo. O programa abriu ainda uma dupla possibilidade de interpretação. A primeira delas estaria ligada à tradição republicana de autogoverno local, onde indivíduos seriam capazes de tomar decisões bem instruídas, inteligentes e racionais em suas comunidades; e a segunda, associada às discussões sobre democracia participativa.

Impasses e contradições

Havia um impasse fundamental sobre a iniciativa: o modelo de combate da pobreza. Um núcleo mais “radical”, com apoio de movimentos sociais, defendia que o governo se tornasse responsável pela criação de empregos públicos, rompesse com a exclusividade do modelo de parceria público-privado e se comprometesse com o pleno emprego e renda garantida, com participação política plena e papel de destaque para as lideranças locais na ação comunitária. Esse aumento da participação popular significaria tanto um caminho mais próximo da democracia participativa, quanto o enfrentamento das elites políticas regionais, que excluíam e segregavam as minorias.

Existia um setor mais moderado do Partido Democrata que pretendia enfatizar a parceria público-privada, criação de oportunidades, treinamento e auxílio para que as empresas pudessem expandir as vagas no mercado de trabalho. Dessa maneira, o governo estaria em uma posição de contribuir para que a iniciativa privada criasse os empregos necessários para reverter a situação do desemprego. Além disso, treinamento e reforço educacional estariam presentes em projetos que envolvessem os dois setores. A ação comunitária era vista como uma forma de aumentar a participação popular, mas sempre com a mediação e o controle da administração pública.

Finalmente, um núcleo mais conservador, que, apesar de enfatizar a importância do emprego público na garantia de vagas para os mais pobres, era totalmente contrário aos projetos que previam participação e engajamento popular. O político e sociólogo Daniel Patrick Moynihan era um dos principais nomes. Com o passar do tempo, os núcleos foram-se tornando mais definidos, e os conflitos sobre o modelo de combate à pobreza, insustentáveis.

A Guerra à Pobreza refletia as contradições do próprio liberalismo democrata, no sentido de que abraçava uma crítica estrutural da pobreza, reconhecendo que o racismo e as políticas de exclusão tinham gerado uma pobreza desigual, mas mantinha uma ênfase no discurso meritocrático e do valor do esforço para a superação do problema. Não existia o intuito de reorganizar o papel do governo federal em relação ao mercado. O pagamento de auxílios garantidos pelo governo, ou a criação de empregos públicos em massa, estavam completamente descartados. O foco era a criação de oportunidades, o treinamento e a expansão da cidadania.

Em um cenário político onde a luta contra os grandes monopólios econômicos já não era mais a ênfase do Partido Democrata, as administrações de Kennedy e Johnson enfatizavam a parceria entre Estado e corporações. O governo não tinha interesse em garantir salários universais e empregos públicos. Essas seriam necessidades da época do New Deal e da instabilidade econômica da década de 1930. A intenção era ajudar as empresas privadas a ampliarem as vagas de trabalho, transformando os “consumidores de impostos” em “pagadores de impostos”. Em outras palavras, o Estado deveria ajudar os necessitados apenas de forma temporária.

Movimentos sociais, intelectuais e ativistas (incluindo membros do Escritório de Oportunidade Econômica) tentaram, por sua vez, fazer da Guerra à Pobreza uma iniciativa que iria além da parceria público-privada e tornaria o Estado o principal responsável pela criação de empregos e de oportunidades. Esse impasse culminou na ampliação da insatisfação social, tendo sido materializada pelas revoltas urbanas a partir de 1965 e pela organização do Freedom Budget e da Poor People’s Campaign.

Sign-carrying participants march on the southern leg of the Poor People's Campaign May 10, 1968, in Atlanta. (AP file photo)

Manifestantes da Poor People’s Campaign, em 10 de maio de 1968, em Atlanta (Crédito: AP)

A partir da liderança de Philip Randolph, ativista pelos direitos civis, a Freedom Budget foi um protótipo de projeto de lei que pretendia alargar a Guerra à Pobreza em seu modelo de ação. Era a visão de um segmento do movimento pelos direitos civis de como otimizar a iniciativa do governo. Previa o financiamento de empregos públicos, o pleno emprego e salários garantidos para todos os norte-americanos. O esqueleto econômico foi escrito por Leon Keyserling, deixando claro como o modelo do New Deal embasou a iniciativa, que nunca se transformou em projeto de lei de fato.

Já a Poor People’s Campaign foi idealizada por Martin Luther King como uma grande marcha em Washington, retomando o que já tinha acontecido em 1963, mas, desta vez, concentrada no problema da pobreza. Destacou-se pela iniciativa de união entre as lideranças minoritárias e enfatizava medidas imediatas. O objetivo era que as sequelas da pobreza fossem sanadas emergencialmente e, além disso, o Estado se responsabilizasse por salários e empregos garantidos. King foi assassinado tempos antes da data da Marcha, que ainda assim se manteve. Os manifestantes foram recebidos com violência pela polícia, mas se mantiveram firmes nas demandas por um Estado que interviesse diretamente na economia para criar os empregos de que os mais pobres precisavam.

A Guerra à Pobreza encontrou seu fim com a derrota democrata nas eleições de 1968. Iniciativas como os programas de ação comunitária, ainda que em novos modelos, o Job Corps, o Medicare e o Food Stamp foram mantidos. Bem diferente do começo da administração Johnson, o final de seu governo foi profundamente marcado pelo caos da Guerra do Vietnã e pela escalada interna de conflitos sociais. No entanto, o fim da Guerra à Pobreza não significou o fim de reivindicações por combate da pobreza, por mudanças na relação Estado-sociedade-economia, pela criação de pleno emprego, ou de salários garantidos.

O legado da Guerra à Pobreza não foi apenas o dos projetos em si, mas das discussões. Em sua perspectiva mais radical, o combate da pobreza institucional era reformista, mas não revolucionário. Nesse sentido, núcleos do Partido Democrata e de movimentos sociais reformistas deram continuidade às demandas que apareceram tanto nas discussões para criar a Guerra à Pobreza quanto na Freedom Budget.

Democratic presidential candidate Sen. Bernie Sanders and Rep. Alexandria Ocasio-Cortez hold a news conference to introduce legislation to transform public housing as part of their Green New Deal proposal outside the U.S. Capitol November 14, 2019, in Washington, D.C.

Senador Bernie Sanders (I-VT), então pré-candidato democrata à Presidência dos EUA, e a representante Alexandria Ocasio-Cortez (D-NY) em entrevista coletiva sobre programa de habitação do Green New Deal, em frente ao Capitólio, em 14 nov. 2019, em Washington, D.C. (Crédito: Chip Somodevilla/Getty Images)

No cenário mais recente, com os destaques do senador Bernie Sanders e da representante Alexandria Ocasio-Cortez, o Partido Democrata revisitou e aprofundou temas como a expansão do sistema de saúde, renda básica universal, educação universitária gratuita, ou com custo reduzido, habitações acessíveis e crescimento econômico sustentável. O Green New Deal seria um exemplo prático. Com a crise econômica gerada pela pandemia do coronavírus, o governo Joe Biden parece disposto a trazer, mais uma vez, alguns desses temas para a linha de frente da política interna.

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Anunciado em uma matéria do jornal The New York Times como o “maior esforço antipobreza em uma geração”, o American Rescue Plan, uma das três etapas do projeto Build Back Better, foi apresentado como a principal medida de resposta à crise do coronavírus. No site da Casa Branca, é possível encontrar uma explicação do plano que destaca: a garantia de auxílio direto aos americanos, a reabertura das escolas e o suporte às comunidades necessitadas. Especificamente sobre o auxílio direto, a administração Biden modificou as medidas iniciadas ainda no governo de Donald Trump.

De acordo com a nova legislação, todos aqueles que receberam até US$ 80.000 anuais estão elegíveis para um pagamento único de até US$ 1.400, além de cheques adicionais no mesmo valor por cada filho dependente. Para casais, o teto é de US 160.000 anuais, mas o benefício é gradual para aqueles que recebem entre US$ 160.000 e US$ 112.500.

Se, por um lado, o teto passou a ser mais restritivo, já que o governo Trump autorizou que aqueles que recebessem até US$ 99.000, ou casais com renda de US$ 198.000, fossem beneficiados com pagamentos entre US$ 600 e US$ 1.200, os democratas alargaram os beneficiados entre os mais necessitados — uma promessa de campanha. Em destaque: famílias com status de documentação misto, com imigrantes documentados e não documentados, passaram a ser elegíveis. Aumentou também o número de idosos e de estudantes que podem receber benefícios, bem como facilitou-se o repasse para famílias de baixa renda que não declaram imposto de renda.

A carreira política de Biden é associada à sua parceria com as classes médias e aos trabalhadores de “colarinho azul”. Sem deixá-los de lado, o “American Rescue Plan” apresenta soluções que mesclam interesses das classes médias, como redução de imposto e subsídio para pequenas empresas; que favorecem tanto classes baixas e médias, como a diminuição dos premiums dos seguros-saúde; e garantem um maior suporte para as classes mais baixas, como o aumento do pagamento do seguro-desemprego e de auxílio para pagamento de aluguel imobiliário.

A administração de Biden parece entender o quão profundo foi o impacto econômico da covid-19 no país. Em torno de 9% dos adultos disseram não ter comida suficiente em suas casas durante a pandemia. Assim como na década de 1960, esse número trazia uma disparidade racial evidente: afro-americanos e latinos tinham mais do que o dobro de chance de terem passado por essa situação — 6% para brancos, e 16%, para latinos e afro-americanos. O desemprego atingiu especialmente as pessoas com baixo salário, posição ocupada proporcionalmente mais por minorias raciais. É inegável que falar de desemprego, fome e pobreza nos Estados Unidos de 2021 (e de 1960) também é falar sobre desigualdade racial. Aparentemente, o governo Biden está reconhecendo as particularidades da desigualdade social do país.

EE.UU. supera los 100.000 muertos por COVID-19 titubeando en la reapertura

Pessoas esperam por distribuição de máscaras e de comida promovida pelo reverendo Al Sharpton no Harlem, Nova York, em 18 abr. 2020 (Crédito: Bebeto Matthews/AP)

Em entrevista para o New York Times, o ex-senador democrata Tom Daschle aposta que Biden será o Lyndon Johnson das famílias de baixa renda em um novo momento da história. “Os tempos mudaram, disparidades econômicas e raciais se tornaram mais agudas, mais bem entendidas e mais importantes nos últimos anos”. Não necessariamente mais agudas, mas, de fato, a lacuna entre a riqueza de afro-americanos e de brancos permanece quase a mesma desde 1968 (em 2016, ela era apenas 0,7% menor). Mesmo com a aprovação das leis pelos direitos civis e políticos, muito pouco foi sentido economicamente.

Os planos de Biden

A Guerra à Pobreza de Johnson tentou se manter em um discurso universal, sem escolher um determinado tipo de pobreza como inimiga. Já Biden parece tentar equilibrar as demandas das classes trabalhadoras e médias brancas com as demandas de movimentos sociais afro-americanos, latinos e da população pobre no país. Em evento anterior à eleição da Poor People’s Campaign, o democrata afirmou que “eliminar a pobreza não será apenas uma aspiração, mas sim um meio de construir uma nova economia”. Nesse sentido, Biden e Johnson parecem ter um objetivo comum bastante claro: fazer do combate à pobreza um aliado do crescimento e melhoramento econômico nacional, uma vez que o desenvolvimento da nação seria possível apenas a partir da diminuição da pobreza.

A diferença é que Johnson não vivia uma crise profunda da economia. Na verdade, em face dos novos desafios postos após a recuperação econômica europeia e japonesa e o aumento da competição internacional, os mais pobres eram um novo mercado consumidor que os Estados Unidos precisavam ganhar. Mas o país não vivia, ainda, um problema grave de crescimento econômico. Durante a Guerra à Pobreza, um dos principais objetivos era transformar os chamados “consumidores de impostos” em “pagadores de impostos”, conforme mencionado. A qualificação dessa mão de obra abriria novas oportunidades de emprego, ao mesmo tempo em que esses trabalhadores passariam a consumir e a contribuir para o país. Naquela época, este argumento era uma das justificativas para os gastos do governo com o projeto.

No caso de Biden, a criação de uma “nova economia” está inserida em seu American Jobs Plan. Com um orçamento previsto de US$ 1,9 trilhão e um anúncio bastante simbólico — já que foi feito em Pittsburgh, mesmo local onde a campanha tinha sido anunciada —, o democrata prometeu uma série de investimentos que priorizariam trabalhadores, sindicatos e a classe média, em vez de Wall Street. No discurso, o presidente retomou a discussão sobre como a pandemia agravou a desigualdade social. Enquanto 20 milhões de pessoas perderam o emprego nos Estados Unidos, o 1% mais rico do país multiplicou suas fortunas em aproximadamente 35%.

O American Jobs Plan pretende um investimento massivo na criação de empregos que faria com que os próprios americanos transformassem o país para se tornar economicamente competitivo (em especial na disputa contra a China). A ideia é que reformas de base e tecnologia precisam ser aplicadas, desde pontes, ferrovias e rodovias a opções limpas de transporte e energia, reformas de escolas, centros comunitários, expansão da rede de Internet e melhor preparo contra desastres naturais, com ênfase em beneficiar a produção nacional.

Com previsão de alcançar um crescimento anual entre 6% e 7% (número próximo aos anos 1960), o plano seria o maior investimento federal desde a Segunda Guerra para a criação de empregos, mas com uma grande diferença: Biden afirmou que não haverá exclusão racial. Isso porque o New Deal não garantiu um benefício igualitário entre brancos e afro-americanos, especialmente pela interferência dos estados. A própria rede de proteção social criada após a Segunda Guerra seguiu o padrão da desigualdade. Mais uma vez, o governo Biden parece incorporar denúncias sociais latentes ao programa.

Com a ideia de que os gastos públicos seriam a melhor forma de investimento e de retomada da competitividade dos Estados Unidos em âmbito internacional, o Plano indica uma tentativa de recriar as antigas alianças entre Corporações, Estado e trabalhadores sindicalizados que foi fundamental para sustentar o “sonho americano” nos anos 1950 e 1960. Em meados de 1950, a taxa de sindicalização no país era de 35%, mas em 2020 ela chegou a 10% — uma queda progressiva registrada nos últimos anos. Biden citou inúmeras vezes que pretende fortalecer novamente os sindicatos, ao mesmo tempo em que prometeu políticas mais duras contra empresas que fecharam no país para abrir no exterior em busca de mão de obra mais barata.

Para compensar o fato de que os trabalhadores pagam desproporcionalmente impostos e garantir a verba de investimento, o Plano cria um aumento de imposto corporativo para 28%, um imposto global de empresas americanas de 21% e medidas de fiscalização para evitar a evasão de impostos. Vale apontar que o pagamento de impostos pode ser amenizado por meio de créditos para as empresas que geram empregos internamente. Dessa maneira, a relação entre as empresas e o Estado assume um caráter de “parceria” com aquelas que estejam nos Estados Unidos e empreguem os americanos.

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Biden discursa sobre economia no campus da Cuyahoga Community College Metropolitan, em Cleveland, em 27 de maio de 2021 (Crédito: AP Photo/Evan Vucci)

Já o American Families Plan busca reduzir o custo da educação de nível superior em instituições destinadas às minorias, aumentar o número de professores afro-americanos, bem como a rede de suporte a todos os docentes e criar meios de acesso universal para educação de qualidade para crianças com menos de 4 anos. Pretende também aumentar a segurança econômica das famílias com nivelamento de impostos para as famílias mais pobres, garantia de licença remunerada médica e familiar, plano de assistência nutricional e investimento de US$ 3 bilhões na saúde materna. Finalmente, o Plano promete aumentar os créditos de impostos para trabalhadores, tornando créditos de impostos para famílias com filhos dependentes algo permanente, bem como o crédito para famílias de baixa renda sem dependentes; além de tornar a redução dos premiums dos seguros-saúde permanentes, podendo poupar até US$ 50 mensais por pessoa em cada família.

Combate à histórica desigualdade socioeconômica

Tanto o American Jobs Plan quanto o American Families Plan almejam criar benefícios que se aplicam tanto às classes médias quanto às mais pobres, com ênfase na inclusão social e no alívio de impostos para os trabalhadores, enquanto aumenta os impostos das corporações e aposta no investimento governamental para o país crescer. Dessa maneira, parece claro que o governo Biden apresenta um projeto econômico bastante diferente do encabeçado pelo governo Trump — que apostou nos cortes de impostos para empresas como facilitador do investimento no país. Ainda que, se comparado aos governos democratas anteriores, não se visse um projeto que acreditasse tanto no uso do Estado como catalisador de crescimento econômico desde o governo de Franklin D. Roosevelt.

Na Guerra à Pobreza, assumiu-se que a prosperidade e a afluência já estavam encaminhadas, com necessidade de manter a administração da economia na parceria público-privada para a incorporação dos mais pobres. O governo Johnson não abriu margem para a criação de empregos públicos, aumento do endividamento, ou da cobrança de impostos das empresas como captação de recursos para o financiamento de projetos. Paralelamente, os movimentos sociais daquela época e os próprios intelectuais-ativistas envolvidos com a Guerra à Pobreza buscavam um espaço para aprofundamento do projeto. Um aprofundamento que reconhecia a necessidade do Estado de interferir no problema da desigualdade social e racial do país, além de criar medidas ainda mais profundas para democratizar o acesso à educação, habitação, saúde, alimentação e o pagamento de “salários garantidos”.

A sociedade de 1960 tinha herdado a estrutura criada pelo New Deal de benefícios e seguros para os trabalhadores sindicalizados, majoritariamente brancos. O franco declínio dos sindicatos esteve associado ao declínio dessas estruturas com a necessidade de baratear os custos da produção no país no momento de aumento da competição internacional. Assim, o governo Biden dá indicativos de recuperar tanto as discussões sobre o combate à pobreza dos anos 1960, com destaque para demandas de movimentos sociais e ativistas da época, bem como almeja recuperar o “sonho americano”, apostando na valorização dos sindicatos, aumento dos salários mínimos e políticas mais duras para corporações que exportam suas vagas de emprego e utilizam ao máximo a evasão fiscal.

Se esses projetos serão aprovados, é muito difícil prever. Entretanto, assinalam que o Partido Democrata reconheceu o desapontamento com a administração Obama, especialmente no que toca às demandas sociais, requeridas desde meados do século XX, à maior proteção aos trabalhadores e a políticas que verdadeiramente tentam reparar as desigualdades sociais e raciais do país.

 

* Barbara Mitchell é doutora em História Social (PPGHIS/UFRJ – Sanduíche Harvard University) e pesquisadora na Rede de Estudos de Estados Unidos. Contato: barbaram.mitchell@gmail.com.

** Recebido em 30 de maio de 2021. Este Panorama EUA não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU.

Edição e revisão final: Tatiana Teixeira.

Assessora de Imprensa do OPEU e do INCT-INEU, editora das Newsletters OPEU e Diálogos INEU e editora de conteúdo audiovisual: Tatiana Carlotti. Contato: tcarlotti@gmail.com.

 

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