América Latina

Ataque aos direitos humanos sitia Comissão da OEA

O secretário-executivo da CIDH, Paulo Abrão (Crédito da image: La Prensa/OEA)

Por Bruno Boti Bernardi, Isabela Gerbelli Garbin Ramanzini, João Henrique Ribeiro Roriz e Matheus de Carvalho Hernandez*

Recusa em renovação contratual de secretário-executivo da Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA é uma das peças para entender trama articulada contra diversas organizações internacionais de defesa dos direitos humanos.

Em 25 de agosto de 2020, ocorreu a maior investida em décadas contra a autonomia e a independência da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH). Luís Almagro, secretário-geral da Organização dos Estados Americanos (OEA), decidiu não renovar o mandato de Paulo Abrão, secretário-executivo do órgão especializado na defesa dos direitos humanos.

Renovado a cada quatro anos, o cargo de secretário-executivo é ocupado, desde 2016, por Paulo Abrão, brasileiro com reconhecida trajetória nacional e internacional na área dos direitos humanos. Sob a sua condução, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos esteve à frente de problemas espinhosos para a região, como a migração nos Estados Unidos, as causas indígenas e ambiental no Brasil, as garantias democráticas na Venezuela e Nicarágua, entre outros.

A indicação de recondução para o posto, prerrogativa dos próprios membros da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, foi aprovada por unanimidade, gerando expectativa legítima de que Paulo Abrão consolidasse o curso de transformações e modernizações institucionais que sua gestão imprimiu ao órgão.

A recusa de Almagro representa mais do que a ruptura no diálogo entre a OEA e o órgão de direitos humanos. Trata-se de interferência inequívoca na autonomia da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, episódio que traz à tona um passado autoritário que insiste em assombrar a memória da região. A Comissão já foi muito atacada em um passado não muito distante, em que a América Latina era assolada por ditaduras militares que se incomodavam com acusações de tortura, desaparecimentos forçados, prisioneiros políticos, dentre outras.

Em particular, a decisão denegatória causa consternação pelas estratégias de desabonamento pessoal do secretário-executivo e descredibilização do órgão. Sob o pretexto de que o secretário-executivo vinha sendo alvo de supostas reclamações registradas por funcionários da Comissão Interamericana de Direitos Humanos ao ombusdperson da OEA, Almagro utilizou um relatório confidencial para atropelar regulamentos e justificar a, até agora mal esclarecida, dispensa de Paulo Abrão.

Ainda que discrepante, este não foi um episódio isolado na história da Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Além da resistência à Comissão nas décadas de ditaduras militares na região, o órgão sempre viveu entre crises financeiras, suspensão de remessas estatais e até ameaças – às vezes cumpridas – de retirada de Estados. Em 2011, o controverso processo de reforma e fortalecimento institucional da Comissão Interamericana de Direitos Humanos deixou patente a estratégia de boicote orçamentário liderado por alguns governos latino-americanos em resposta ao que consideravam intromissões desmedidas em assuntos domésticos.

O episódio desta semana revela como a escala e a natureza de confrontação à Comissão Interamericana de Direitos Humanos se expandiram e se sofisticaram, particularmente nos últimos dois anos. Em abril de 2019, Argentina (sob Macri), Brasil, Chile, Colômbia e Paraguai emitiram declaração, requerendo maior deferência do órgão aos Estados. Essa declaração conjunta prenunciava o tipo de postura conflituosa e desconstrutiva que tais governos ensaiavam colocar em prática.

Em outra oportunidade, em junho de 2019, a eleição de Comissários para a composição do órgão reforçou a ideia de que um bloco de governos hostis tentaria desequilibrar o balanço de forças dentro da instituição. O candidato da Colômbia, que representava a preferência desse grupo, perdeu o pleito por apenas um voto. Independentemente do resultado, a disputa acirrada revelou sinais de novos tempos para os órgãos de proteção dos direitos humanos na região.

A Comissão Interamericana de Direitos Humanos não é o alvo exclusivo dos ataques recentes contra as instituições de direitos humanos. Investidas semelhantes e igualmente graves aconteceram em diversas organizações internacionais. Na ONU, os EUA de Trump se retiraram do Conselho de Direitos Humanos em 2018. No ano seguinte, assistiu-se aos ataques do presidente do Brasil à alta comissária de Direitos Humanos, Michelle Bachelet.

As peças desse quebra-cabeça disfuncional revelam a imagem de uma coalizão de governos de extrema direita, muito bem articulada e paramentada, que se esforça em minar os consensos históricos dos sistemas internacionais e regionais de proteção de direitos. Por exemplo: embora o esforço de vetar o uso do termo “gênero” nos documentos da ONU possa parecer apenas uma cruzada ideológica moderna isolada, existe na verdade uma estratégia de revisionismo mais amplo das normas internacionais de direitos humanos, cujas consequências podem ser catastróficas. A negação de direitos a grupos vulneráveis e o efeito dominó sobre muitas outras organizações internacionais, como a Organização Mundial da Saúde, intensificariam a tragédia.

A proteção internacional de direitos humanos se estrutura por meio de um sistema de órgãos internacionais. Em funcionamento há 61 anos, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos é o único foro de monitoramento com alcance sobre todos os Estados da região, tendo como função principal promover a observância e a defesa dos direitos humanos nas Américas, de acordo com o art. 41 da Convenção Americana de Direitos Humanos.

Um dos diferenciais da Comissão Interamericana de Direitos Humanos é a proximidade construída junto à sociedade civil e às vítimas de violações de direitos humanos. As visitas in loco, os encontros com líderes de movimentos sociais e o monitoramento tecnologicamente aprimorado nos últimos anos garantiram uma cobertura ampla de proteção às populações historicamente marginalizadas da região.

A ampliação da conscientização individual e coletiva dos direitos humanos promovida pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos não só remedia violações caso a caso, mas também alavanca o empoderamento de cidadãos contra violações de seus governos.

Mais do que uma crise conjuntural do multilateralismo, o que se observa na sucessão de episódios de intimidação dos organismos de direitos humanos é um movimento conservador, reacionário e antidireitos humanos que chega com pretensões de ficar.

A Comissão Interamericana e outros organismos internacionais precisam liderar uma frente preventiva para assegurar que garantias de direitos humanos sejam inegociáveis.

A notícia de que a ONU, por meio da alta comissária de Direitos Humanos, Michelle Bachelet, pressiona por uma solução para a crise em torno da Secretaria Executiva da Comissão Interamericana de Direitos Humanos é um passo importante para a construção de uma reação à altura dos desafios gigantescos de direitos humanos na região.

 

* Bruno Boti Bernardi é professor da Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD) e pesquisador do INCT-INEU. Isabela Gerbelli Garbin Ramanzini é professora da Universidade Federal de Uberlândia (UFU). João Henrique Ribeiro Roriz é professor da Universidade Federal de Goiás (UFG). Matheus de Carvalho Hernandez é professor da Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD) e pesquisador do INCT-INEU.

** Publicado originalmente no jornal Estadão, em 28 de ago. 2020. Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU.

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