Estudos sobre os Estados Unidos no Brasil: um campo em formação

Professores Flávia de Campos Mello (PUC-SP/INCT-INEU) e Sebastião Velasco e Cruz (Unicamp/INCT-INEU)

No encerramento da Conferência Nacional de Estudos Políticos sobre os Estados Unidos, ocorrida entre 25 e 28 de novembro de 2019, na PUC-SP, o cientista político Sebastião Velasco e Cruz (Unicamp/ INCT-INEU) problematizou a constituição de um campo de estudos sobre os Estados Unidos no mundo e, em particular, no Brasil, onde a área se encontra em formação.

Um dos coordenadores do Instituto Nacional de Estudos sobre os Estados Unidos (INCT-INEU)*, que congrega quase 90 estudiosos da maior potência mundial, Velasco abordou diversos discursos e visões sobre os Estados Unidos no país, desde os relatos de Hipólito José Castro, fundador do Correio Braziliense, em Londres; a escritores e pensadores como Érico Veríssimo, Monteiro Lobato, entre outros.

Neste percurso, Velasco mostrou a força da Revolução Americana no pensamento da Inconfidência Mineira (1789); das lutas de Independência da América Ibérica e ao longo da nossa República, já em seu início, dividida entre os modelos da “República americana e da monarquia constitucional – de corte inglês, ou francês – a preferência das elites dos países novos”, detalha.

Trazendo o nome de pensadores como Tavares Bastos (liberal), Visconde de Uruguai (conservador) e Rui Barbosa, leitores de A Democracia na América de Alexis de Tocqueville; Velasco e Cruz destaca que “a camada ilustrada da elite política brasileira contava, na segunda metade do século XIX, com meios para se informar sobre a sociedade americana, e que muitos de seus membros faziam bom uso desses recursos”.

As informações, conta ele, também chegavam por meio de diplomatas e de outros profissionais que “abasteciam regularmente os governantes brasileiros”, como o diplomata Miguel Maria Lisboa; Oliveira Lima, primeiro americanista brasileiro, autor de Nos Estados Unidos: impressões políticas e sociais. Apesar do esforço de tantos, pondera, “o Brasil continuou por um bom tempo ainda na esfera de influência cultural europeia”.

Somente depois da Primeira Guerra Mundial, porém, nas décadas de 1920 e 1930, “os EUA invadiram o imaginário do brasileiro urbano, com a generalização do automóvel e o apelo irresistível da cultura de massa”. Neste momento, a imprensa brasileira começa a ser abastecida por agências internacionais, em particular as americanas United Press e Associated Press. É quando Monteiro Lobato escreve América, Érico Veríssimo publica Gato Preto em Campo de Neve, e Alceu Amoroso Lima lança A Realidade Americana.

Além desses nomes, Velasco e Cruz também destaca como pensadores responsáveis por aproximar o público brasileiro da história, da economia, da política e da sociedade dos Estados Unidos os nomes de Joaquim Nabuco, do diplomata Salvador de Mendonça, do escritor Eduardo Prado, do romancista Vianna Moog, do cineasta Olympio Guilherme, entre outros.

“Formou-se no Brasil um estoque não desprezível de conhecimentos sobre os Estados Unidos”, daí a questão: por que a História e as Ciências Sociais no Brasil, ao se constituírem como disciplinas acadêmicas, mantiveram-se por tanto tempo a distância deste objeto?

Institucionalização dos Estudos Americanos

“Nosso Instituto (INCT-INEU) escolheu designar seu objeto e sua razão de ser mediante um termo cujo referente é uma unidade política bem definida no sistema internacional: os Estados Unidos”. No entanto, observa, “quando buscamos nos situar comparativamente, percebemos que estamos inseridos em um universo que se autoidentifica através da rubrica ‘Estudos Americanos'”. Apesar de todos os desconfortos com esta denominação, trata-se do “termo consagrado no mundo”.

Surgido em 1920, o campo dos Estudos Americanos será impulsionado por obras como Main Currents in American Thought (1927), de Vernon Louis Parrigton, com “imenso impacto” no meio cultural norte-americano durante os anos 1930. “Tendo se conformado num período em que os Estados Unidos viviam profunda crise econômica e tempos de ampla reforma social, havia margem nessa fase para uma dose crítica que vai desaparecer quase inteiramente mais tarde”, aponta Velasco e Cruz. No período posterior, essa visão crítica, da América como uma “terra de muitos problemas, mas de enormes possibilidades”, cede lugar à “América exemplo para o mundo, terra de prosperidade, democracia e liberdade”.

Impulsionadas por fundações privadas e, sobretudo, por agências governamentais, nas décadas de 1940 e 1950, “os Estudos Americanos se institucionalizam como disciplina acadêmica, com presença reconhecida no sistema universitário”, conta Velasco e Cruz. Nos anos 1960 e 1970, por sua vez, em meio à luta dos movimentos sociais que deram nova configuração à cena política e cultural americana, surgem novas áreas de pesquisa e de ensino como Black StudiesWomen StudiesNative American StudiesLGBT Studies e outras, que “abalam as convicções constitutivas do campo, tornando implausível a ideia de desvelar a alma, o genuíno espírito americano”.

Ele destaca, ainda, que, nesse período do pós-Guerra, o campo dos Estudos Americanos se difundiram internacionalmente. Em 1980, por exemplo, na então União Soviética, “contavam-se aos milhares os especialistas em Estados Unidos”, devido à competição geopolítica que “exigia a formação de pessoal capaz de ler e interpretar as informações vindas da potência rival”. O mesmo ocorreu na China, onde “a área de Estudos Americanos começa a ganhar forma na década de 1960, em resposta à demanda emanada do Partido-Estado”.

No restante do mundo, porém, a difusão dos Estudos Americanos, como atividade acadêmica se deveu às fundações privadas e, também, às instituições governamentais, em particular depois do Fulbright Act (1946), que visava ao fomento e à implantação de programas dos Estudos Americanos, inclusive com apoio de órgãos como a Agência de Informações dos Estados Unidos (USIA, na sigla em inglês), que existiu de 1953 a 1999.

Estudos Americanos no Brasil

No Brasil, conta Velasco e Cruz, a USIA investiu no ensino de Inglês e em programas de intercâmbio, com objetivo de tornar familiar aos jovens brasileiros os atrativos da vida social e política americana. “Não se verifica, porém, nenhum investimento digno de nota na implantação de programas de ensino e pesquisa na área de Estudos Americanos na agenda desse organismo”, aponta.

A Fundação Ford, por sua vez, uma fundação importante para o desenvolvimento de Programas de Pós-Graduação em Ciências (Ciência Política, Sociologia e Antropologia), teve o Brasil com objeto de estudo, não os Estados Unidos. “Os pesquisadores-docentes vão aos Estados Unidos, com apoio da Fundação Ford, em grande número. Mas para se munir das ferramentas analíticas necessárias à boa condução de suas pesquisas empíricas, cujo objeto era o Brasil”.

“Os Estudos dos Estados Unidos – ou Americanos, conforme o uso internacionalmente consagrado – não receberam, historicamente, estímulos externos e internos para se consolidar entre nós”, sintetiza Velasco. E isso se explica, aponta ele, pelo fato de estarmos “na área de influência” norte-americana, ou seja, não precisamos ser convencidos, ao contrário das elites europeias e asiáticas, “de que os Estados Unidos estavam preparados para assumir a liderança político-intelectual do bloco capitalista e defender os interesses de todos contra a ameaça soviética”.

O resultado, destaca o professor Sebastião, é que o campo de estudos políticos sobre os Estados Unidos ainda está em formação no Brasil. E os desafios, destaca, são de ordem tanto organizacional, quanto conjuntural, apontando os entraves e a indisposição do atual governo em relação à pesquisa e à Ciência, como um todo.

Confira abaixo a íntegra da Conferência de Sebastião Velasco e Cruz, divulgada pela TV PUC em seu Canal do YouTube:

 

Sobre a Conferência Nacional de Estudos Políticos sobre os Estados Unidos, leia também:

Como os EUA tratam os direitos humanos dentro e fora de seu território

Desafios das relações inter-hemisféricas Estados Unidos e América Latina

O controle das Think Tanks nos Estados Unidos e o alcance global de suas redes de poder – Inderjeet Parmar

O lugar dos Estados Unidos no mundo está em questão – Diana Tussie

Estados Unidos sob o viés latino-americano – Luis Maira

 

Tatiana Carlotti é repórter da Carta Maior.

** O Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Estudos sobre os Estados Unidos (INCTINEU) é uma rede composta por mais de 80 pesquisadores, de diferentes áreas e universidades brasileiras sobre a temática dos Estados Unidos. A rede divulga trabalhos e artigos no site Observatório Político dos Estados Unidos (Opeu), confira aqui.

*** Este texto foi originalmente publicado na Carta Maior, em 6 dez. 2019.
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