Sair do tratado nuclear é reconhecer um mundo tripolar

por Solange Reis

 

A decisão do governo Trump de se retirar do Tratado de Forças Nucleares de Alcance Intermediário (INF, na sigla em inglês), em fevereiro, é um prova forte de que o sistema internacional tornou-se, de fato, multipolar.

A suposta não conformidade da Rússia com as proibições do tratado bilateral foi o principal motivo apresentado, mas o fato de a China não ser signatária do INF e, por isso, não enfrentar nenhuma barreira ao desenvolvimento de mísseis, também foi dado como explicação para a saída norte-americana.

Muitas análises destacam que, na verdade, a China seria a razão principal. O objetivo da Casa Branca seria trazer os chineses para o INF ou outro tratado tripartite, ou ganhar autonomia integral para disparar uma nova corrida armamentista.

Um passo atrás na história

O tratado bilateral, assinado em 1987, por Estados Unidos e União Soviética estabeleceu o compromisso entre ambos para eliminação de mísseis de cruzeiro e de médio alcance lançados a partir de base terrestre, com variação de alcance entre 500 e 5.500 Km.

Entre a assinatura e o ano 1991, quando a União Soviética deixou de existir, um total de 2.700 mísseis havia sido destruído. Como o desenvolvimento de outros tipos de mísseis continuou permitido, a exemplo do balístico intercontinental ou dos mísseis de curto e médio alcance lançados do mar ou do ar, o INF não significou um mundo livre das ameaças nucleares. Além disso, por tratar-se de um acordo entre as duas grandes forças nucleares, outros países aspirantes a potências ficaram, em tese, desimpedidos.

Contudo, o tratado teve grande significado e importância, sendo um dos fatores que ajudou a levar ao cenário de fim da Guerra Fria. A Rússia, como herdeira das armas e dos compromissos da União Soviética, manteve a assinatura do documento até fevereiro deste ano, quando decidiu não continuar unilateralmente no INF. Afinal, não faria nenhum sentido respeitar sozinha um acordo bilateral.

Quid pro Quo. E agora, Donald?

O tratado tem duração indeterminada, podendo ser denunciado por qualquer lado, respeitando-se uma carência de seis meses e motivos extraordinários relacionados ao seu objeto. Em qualquer circunstância, a decisão dos Executivos dispensa autorização legislativa.

Os Estados Unidos alegam que o “motivo extraordinário” é o descumprimento do tratado pela Rússia, que teria desenvolvido um sistema de mísseis de cruzeiro, denominado SSC-8, para a OTAN, e 9M729, para os russos. A acusação não começou no governo atual, mas com Barack Obama, em 2014.

A Rússia admite a existência do 9M729, mas nega que o equipamento entre na categoria do INF. Por outro lado, o Kremlin acusa os Estados Unidos de instalar na Romênia o Aegis Ashore, sistema banido pelo tratado. A Polônia, outro aliado norte-americano, também estaria para receber o mesmo tipo de artefato.

Após a comunicação do governo norte-americano sobre a saída do tratado, o presidente russo, Vladimir Putin, disse que responderia “quid pro quo”. Em seguida, retirou a Rússia do INF. Se nada diferente acontecer até lá, esse tratado histórico estará morto em agosto de 2019.

O dragão corre por fora

Não é segredo que a decisão do governo Trump tem tanto a ver com a China quanto com a Rússia. Desde a política do pivô asiático lançada por Obama e o consequente desmonte de bases militares dos Estados Unidos na Europa, ficou evidente que a preocupação estratégica do país está majoritariamente voltada para a Ásia-Pacífico. Nessa região, China e Estados Unidos travam hoje uma competição de exercícios militares e uma disputa pelo alinhamento de países asiáticos e da Oceania.

Na visão da Casa Branca, do Pentágono e de parte dos políticos, o INF é um instrumento obsoleto, pois não reflete a transformação do sistema internacional. Quando ele foi implementado, a China já possuía a bomba atômica, mas sua capacitação em mísseis não se comparava à atual. Hoje, cerca de 90% do arsenal de mísseis e lançadores chineses seriam proibidos pelo INF, caso a China fosse sua signatária.

A própria Rússia já havia mostrado a intenção de trazer a China para o INF, sabendo que o sistema chinês de mísseis de curto alcance e intermediário tem raízes geopolíticas complexas. Manter a soberania sobre Taiwan – que a China considera uma província rebelde -, garantir a liberdade de navegação em mares com acachapante presença militar dos Estados Unidos e fortalecer-se na Ásia contra os aliados dos norte-americanos, como Coreia do Sul, Japão e, eventualmente, Índia, seriam alguns dos interesses chineses.

O fim do INF é péssima notícia para a segurança europeia, embora mísseis russos de curto alcance (ou americanos, de uma outra América pouco amistosa no pós-Trump)  já sejam capazes de fazer um bom estrago no continente. Do ponto de vista militar, é ruim; do ponto de vista político, um choque de realidade. Embora a OTAN tenha avalizado a decisão, os Estados Unidos sequer consultaram os aliados previamente. A Europa passou, definitivamente, para segundo plano na estratégia norte-americana.

Para tentar manter o tratado vigente, a Alemanha sugeriu que a China conside entrar para o INF, ao que um membro do Partido Comunista Chinês, Yang Jiechi, respondeu de forma objetiva. “A China está desenvolvendo suas capacidades estritamente de acordo com suas necessidades defensivas e não representa uma ameaça para ninguém mais. Por isso, somos contra a multilateralização do INF”.

Suporte doméstico

“Tratados são como rosas e garotas: duram enquanto duram”. Com essa frase desprezível de Charles de Gaulle, o atual conselheiro de segurança nacional, John Bolton, defendeu a denúncia do tratado. A ideia foi exposta pela primeira vez em um artigo do The Wall Street Journal, com elementos claros: o mundo mudou, e os Estados Unidos não podem se deixar constranger por um instrumento do passado. Bolton não mudou uma vírgula na sua ideia desde então.

Naturalmente, invocar novas ameaças e soltar as amarras do controle de armas nucleares são formas de ajudar a convencer o Congresso a liberar verbas para modernizar o arsenal norte-americano. Parte do orçamento da Lei de Autorização de Defesa Nacional de 2019, que destina US$ 717 bilhões para gastos militares, é voltada para dar início ao plano de atualização das forças nucleares. Até 2046, estima-se nada menos do que US$ 1,2 trilhão para gerir e modernizar o poderio nuclear dos Estados Unidos.

A indústria bélica agradece.

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