Panorama EUA

Administração Trump e o NAFTA: a tática de dividir para reinar e o poder do tempo

Panorama EUA, vol. 4, no. 7, setembro de 2018

por Neusa Maria P. Bojikian*

Ao adiantar bilateralmente as negociações com o México,  os Estados Unidos conseguem extrair concessões do Canadá?

Nas últimas semanas, Presidente Trump e sua equipe de negociadores deram inúmeras declarações que expressavam o uso do ultimato nas negociações do NAFTA. Além disso, adotaram deliberadamente a estratégia de bilateralizar a negociação do NAFTA, priorizando as negociações de questões mais espinhosas com seus interlocutores mexicanos e, depois de tudo ‘acertado’ com esses, convidaram seus interlocutores canadenses para sentar à mesa e decidir tudo em tempo recorde.

Pessoalmente o Presidente Trump parece acreditar que táticas de barganha são as armas para o sucesso. Costumava encenar esse perfil em suas práticas de negócios privados – assim conta em suas memórias. No caso concreto das negociações do NAFTA, repetidamente ameaçou retirar-se do acordo caso não pudesse renegociá-lo para melhor servir aos interesses de seu país.

A tática de dividir para reinar

Possivelmente, a equipe de negociadores americanos, sob liderança do próprio Presidente Trump concluiu que seus interlocutores possuem diferentes motivações, incluindo seus desejos de estar em boas relações com os Estados Unidos e concluir a negociação mais cedo ou mais tarde.

Em um exercício simples, mas didático, pode-se desenhar a seguinte hipótese: os negociadores americanos observaram os respectivos interlocutores, identificaram aqueles dominantes, então elaboraram propostas  e as apresentaram primeiramente àqueles mais flexíveis, para aferir seus pontos de vista e também para ver como os interlocutores dominantes reagiriam. Essa é uma tática arriscada que pode produzir efeitos negativos se for desmascarada. O sucesso com o uso dessa tática depende fundamentalmente do cuidado e da sutileza, atributos aparentemente inexistentes nas ações do atual comandante em chefe dos Estados Unidos e de membros de sua equipe.

Vejamos alguns fatos relativos às negociações do NAFTA. No começo de junho último, Larry Kudlow, Assessor Econômico da Casa Branca, disse que o Presidente Trump poderia buscar conversas separadas com o Canadá e o México, em um esforço para obter acordos comerciais individuais com os dois países. Em julho, Sonny Perdue, Secretário de Agricultura dos Estados Unidos, também considerou essa possibilidade: “México tem sido mais ameno frente a algumas preocupações que temos tido.” Então, o acordo seria primeiro negociado com o México e depois com o Canadá, de modo que em setembro já estaria assinado pelas partes. Nos dias seguintes, representantes da equipe de negociadores do México estiveram em Washington para conversar com seus interlocutores americanos.

Com ampla divulgação, as autoridades mexicanas ressaltaram que o acordo entre os três países continuaria sendo o objetivo. Indicaram que estavam indo a Washington para reforçar o trilateralismo. “A essência deste acordo é trilateral, e continuará sendo trilateral.” As autoridades canadenses também reforçaram seu compromisso com um acordo trilateral. Chrystia Freeland, Ministra das Relações Exteriores (MRE) do Canadá, encontrou-se com Andrés Manuel Lopez Obrador,logo após este ter sido eleito (em 1 de julho de 2018) presidente do México, e revelou ter saído com uma compreensão clara sobre qual seria a posição daquele governo no NAFTA.

Embora não se tenha revelado oficialmente o conteúdo dessa conversa, tende-se a considerar que os presentes abordaram a regra pôr do sol, que procura estabelecer uma expiração automática a cada cinco anos, obrigando as partes a renegociar sistematicamente o acordo. A preocupação das autoridades canadenses é que esta cláusula prejudique a indústria automobilística do país. Além disso, manifestaram total desconforto com a possível intervenção externa, facilitada por uma nova cláusula que venha a permitir investigação americana sobre as importações de automóveis do país.   

Nas semanas subsequentes, ainda que contra a vontade dos negociadores canadenses, as sessões bilaterais de negociações continuaram ocorrendo entre as outras duas delegações. E, ao cabo de um mês foi a vez do Presidente Trump recorrer ao Twitter para dizer que “um grande e bom negócio com o México” estava sendo selado.

Os negociadores mexicanos, visivelmente constrangidos diante da situação em que se viram implicados, tentaram minimizar os resultados alcançados até então entre as duas partes. Ildefonso Guajardo, Ministro da Economia do México, disse: “Nada está acertado, até que tudo esteja acertado.” No léxico das negociações comerciais, isso corresponde ao princípio single undertaking; o que na prática permite que se volte a questões anteriormente discutidas, caso seja necessário, a qualquer momento durante o processo de negociação, mas impreterivelmente antes da assinatura oficial do acordo.

Jesus Seade, líder entre os negociadores mexicanos, sentiu-se compelido a enviar um ‘correio elegante’ para a equipe de negociadores canadenses, liderados por Chrystia Freeland, dizendo que os interlocutores americanos haviam concordado em abrir mão da cláusula relativa à expiração automática. Disse que esses estariam dispostos a aceitar uma regra de “revisão periódica do NAFTA, mas sem expiração automática, a não ser que seja renegociada a cada cinco anos.” Note-se o jogo de embaralhar palavras, locuções e pontuações. Os negociadores americanos vão querer exibir muitos ganhos, sejam eles fatos ou “fatos alternativos”, conforme a Administração Trump costuma definir alguns resultados.

Os negociadores mexicanos, orientados pelo novo governo, ainda terão que enfrentar os negociadores americanos e canadenses para continuar resistindo às pressões para liberalizar o setor energético. Seguindo a orientação de Lópes Obrador, os negociadores mexicanos resistem em consolidar a abertura do setor de petróleo e gás, conforme regulamentação interna promulgada em 2013 e 2014, durante o governo de Enrique Peña Nieto.

Recorrendo ao poder do tempo

Deixando de lado por ora os pontos de resistência dos negociadores mexicanos, importa observar uma outra tática empregada pelos negociadores americanos, qual seja, recorrer ao poder do tempo ou à alavancagem temporal contra seus interlocutores canadenses. Como isso poderia funcionar?

Nos processos de negociação, a alavancagem temporal ocorre quando a passagem do tempo impõe custos às partes envolvidas, mas principalmente de forma desproporcional. Ou seja, uma parte pode sofrer muito mais pressão decorrente do avanço do tempo do que a contraparte. Aquela desfavorecida pode sentir que perderá uma oportunidade ‘única’ ou que sua posição se enfraquecerá no decorrer do processo.

As negociações finais e a respectiva assinatura do novo NAFTA deveriam ocorrer até 31 de agosto de 2018. Assim sendo, haveria tempo hábil de se cumprir o prazo de 90 dias, exigidos para apreciação e aprovação do acordo pelo atual Congresso – supostamente a favor do referido acordo.

A nota do Presidente Trump a respeito do prazo final para assinatura do acordo, agora com o Canadá à mesa, tinha como propósito pressionar os negociadores canadenses. As notícias se multiplicaram, ganhando manchetes mundo afora, e logo a preocupação se instalou entre os agentes econômicos. Na sequência da divulgação das ocorrências de sessões bilaterais entre as delegações americana e mexicana, comentaristas políticos e econômicos do Canadá convocaram o governo a agir, diante da suposta erosão da competitividade das empresas do país. Rob Breakenridge, comentarista canadense que costuma reclamar que o país está perdendo competitividade, disse: “Com a incerteza em torno do NAFTA e a preocupação mais ampla sobre a escalada das tensões comerciais globais, é ainda mais urgente retirar todos os obstáculos para atrair e manter investimentos aqui.”

A manifestação interna surtiu efeito, posto que a MRE do Canadá veio a público diversas vezes afirmar que ela e toda sua delegação estavam trabalhando intensamente para chegar a um acordo dentro do prazo estabelecido pelos negociadores americanos; e assim evitar o colapso nas relações comerciais do país.

Quem perde mais com a passagem do tempo?

Ao mesmo tempo em que a MRE do Canadá demonstrou estar sendo pressionada pelo tempo e pela obrigação de dar respostas para ações próprias ou dos outros relativas ao NAFTA,  Justin Trudeau, Primeiro Ministro do Canadá, pareceu menos ansioso. Atraiu os holofotes rapidamente para dizer que a possibilidade de se chegar a um acordo naquele exíguo prazo existia, mas não deveria ser um acordo qualquer. “Nenhum acordo NAFTA é melhor do que um mau acordo…” Essa é uma expressão usada por negociadores para dizer que não estão comprometidos com o acordo em si, mas com um acordo que atenda seus interesses.

O apoio da mais alta autoridade do Canadá arejou a cabeça dos negociadores canadenses e permitiu-lhes perceber que deveriam agir de forma mais cuidadosa do que seus interlocutores americanos em função de pelo menos dois motivos. Em primeiro lugar porque o Canadá possui um histórico de assegurar relativamente bons resultados nas negociações envolvendo os Estados Unidos. Assim o foi durante as negociações bilaterais em que se constituiu o CUSFTA (1987) e depois no NAFTA. Diferente não seria desta vez. Além disso, os negociadores canadenses estão atualmente lidando com uma delegação de perfil excessivamente antagonista, o que os obriga a se preparar obstinadamente.

Os cuidados da delegação canadense envolvem buscar apoio entre os próprios grupos de interesses americanos, como a Câmara de Comércio dos Estados Unidos, que se manifestou a favor de o acordo permanecer trilateral.  “Para não prejudicar os 14 milhões de empregos nos EUA que dependem do comércio com o Canadá e o México, o acordo deve permanecer trilateral.” O Canadá é o primeiro destino das exportações dos Estados Unidos. Não apenas os estados fronteiriços dos dois países, uma série de outros, como Alabama, Iowa, Geórgia, Pensilvânia e Tenessi, são extremamente dependentes de exportações para aquele país.

A Business Roundtable, um grupo composto por altos executivos de empresas líderes dos EUA, também expressou reservas sobre uma nova cláusula que potencialmente poderia terminar o acordo após 16 anos. O grupo estava se referindo à cláusula regra pôr do sol.

Além disso há várias representações sindicais americanas que possuem parcerias no Canadá, o que significa que esses agentes devem fazer forte lobbyem favor de se manter o acordo na base trilateral.

Os negociadores canadenses estão contando também com possíveis restrições decorrentes das instituições comerciais americanas. Em primeiro lugar há congressistas, inclusive republicanos, que não veem possibilidade de se enquadrar um eventual acordo bilateral entre Estados Unidos e México dentro do Trade Promotion Authority vigente. Pat Toomey, senador da Pensilvânia, acha que assim como o NAFTA entrou em vigor por meio de lei promulgada pelo Congresso, qualquer alteração, como sua rescisão, exigiria legislação adicional do Congresso.

Se há fogo no lado amigo, acaba sendo inimaginável pensar que os congressistas democratas fariam tamanha concessão à Administração Trump.  O NAFTA é uma carta muito marcada; qualquer jogada atrai naturalmente a atenção de diferentes atores.  Na Câmara dos Deputados não há o apoio com que a Administração precisa contar, ainda que tenha havido algumas mudanças relativas às cláusulas trabalhistas.

Mesmo depois da notícia de que os negociadores americanos e mexicanos haviam concordado em alterar o valor da hora do trabalhador ligado à indústria automotiva, estabelecendo que entre 40 e 45% de um automóvel precisa ser produzido por trabalhadores que ganhem pelo menos US$16.00, os democratas não pareceram convencidos o suficiente para endossar automaticamente o acordo. No Senado o desafio também é grande; podem ser necessários 60 votos para se aprovar um acordo entre Estados Unidos e México.

Para finalizar

A tática de dividir para reinar tende a funcionar quando se envolvem partes flagrantemente assimétricas. Nesse caso, enquanto há assimetria nas relações de poder com o México, a relação entre Estados Unidos e Canadá é bem menos assimétrica.

O valor adicional do Canadá representado por sua participação no NAFTA é considerável. Há, além de uma interdependência econômica entre aquele país e importantes estados dos Estados Unidos, as consequências das decisões anteriores. Por essa lógica, a substância e a forma adotadas no NAFTA anterior condicionam em boa medida os termos e condições do atual acordo.

No acordo original, os negociadores americanos e mexicanos combinaram que seria um three-way agreement. Na prática, combinou-se que nenhuma das partes bloquearia as duas outras. Havia um compromisso sobretudo com o CUSFTA. Assim, se os canadenses não concordassem com os termos e condições oferecidos naquele momento aos mexicanos, não teriam eles a obrigação de aceitá-los. Os termos e condições do CUSFTA estariam assegurados de qualquer maneira.

Tal consenso não decorreu de qualquer ato de boa vontade dos negociadores americanos que estiveram à frente do NAFTA do início da década de 1990. A propósito, aquela equipe tinha sido treinada por uma competidora agressiva – Carla Hills, Representante do Comércio de 1989 – 1993 – e viviam transitando em ambientes tensos de negociações, como o GATT e as negociações internas junto ao Congresso.

Isso mostra que os negociadores americanos calcularam e atribuíram importante peso à participação do Canadá no acordo. O NAFTA naquele contexto seria um arranjo que iria refletir, reproduzir e magnificar os padrões de distribuição de poder de modo favorável à economia e à política dos Estados Unidos. E a partir de então muitas estratégias de política comercial foram definidas de modo a preservar esse arranjo.  Portanto uma mudança na configuração não deve ser algo trivial e ligeiro.

Além disso, a tática da alavancagem temporal colocada em prática pelos negociadores americanos, orientados sobretudo pelo perfil pessoal do próprio Presidente Trump, não surtiu o efeito esperado.

A despeito do interesse dos negociadores canadenses em se manter no acordo, o atual governo os orientou a não capitular. Justin Trudeau, Primeiro Ministro do Canadá, veio rapidamente juntar-se à sua delegação diante do ultimato da Administração Trump e mostrou-se disposto a usar seu capital político para não concertar sob tais condições.

O Primeiro Ministro do Canadá indicou que a passagem do tempo nesse caso não implicaria em custos maiores para seu país frente aos demais. Pode-se pensar que, em seus cálculos, a alavancagem do tempo poderia até estar a seu favor. Especialmente para a Administração Trump, os resultados das novas eleições previstas para novembro de 2018 podem se tornar uma barreira inamovível para a realização dos objetivos de política comercial.

Pode-se dizer que as táticas escolhidas e empregadas pelos negociadores americanos foram mal avaliadas. Diferente do que gostaria, a Administração Trump precisa do Canadá e do Congresso para imprimir a sua marca no NAFTA.

 

* Pesquisadora do INCT-Ineu. Doutora e mestre em Relações Internacionais pelo PPGRI-Unesp-Unicamp-PUC-SP. Autora do livro Acordos comerciais internacionais: o Brasil nas negociações do setor de serviços financeiros (2009, Unesp) e Coorganizadora do livro Negociações econômicas internacionais: abordagens, atores e perspectivas desde o Brasil (2011, Unesp).

Realização:
Apoio:

Conheça o projeto OPEU

O OPEU é um portal de notícias e um banco de dados dedicado ao acompanhamento da política doméstica e internacional dos EUA.

Ler mais