Reunião da OTAN é sobre a Alemanha, estúpido!

Em 1991, o conselheiro de Bill Clinton, James Carville, instruiu o democrata a estruturar sua campanha presidencial com a frase que se tornaria célebre, “É a economia, estúpido!”. Para entender a crise da OTAN e a hostilidade de Trump com os europeus também é preciso ajustar o foco. Parodiando Carville, ”É a Alemanha, estúpido!

 

por Solange Reis

Manter os Estados Unidos dentro, a Rússia fora e a Alemanha embaixo era a missão da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), segundo Lord Hastings Lionel Ismay, seu primeiro secretário-geral lá pelos fins dos anos 1950.

Seis décadas depois, a declaração do britânico, que fora indicado ao cargo por Winston Churchill, soa bem apropriada ainda.

Nas entrelinhas dos afagos à organização – a qual chama de “máquina ajustada” – e dos pitos aos aliados europeus – os quais considera caronistas aproveitadores -, o presidente Donald Trump diz mais sobre a ordem internacional que ele almeja do que sobre a aliança transatlântica.

Dia de circo

Logo no primeiro dia da Conferência da OTAN, realizada entre os dias 11 e 12 de julho, Trump fez os representantes dos demais países passearem na costumeira montanha russa de sua política externa e de segurança.

Ao ameaçar fazer as coisas “do nosso próprio jeito”, gerou especulações entre os presentes de que retiraria os Estados Unidos da organização, caso os europeus não abrissem os cofrinhos.

O encontro da OTAN foi realizado na nova sede da organização em Bruxelas, cuja construção totalizou US$ 1,2 bilhão. Arquitetonicamente planejado para lembrar “dedos entrelaçados” – em referência ao espírito de cooperação -, o complexo abriga mais de 4 mil funcionários e delegações de 29 países membros.

Por fora, bela viola; por dentro, pão bolorento. Seus integrantes divergem sobre contribuições orçamentárias, sistemas de defesa e, até mesmo, percepções de ameaça. Segundo o secretário-geral da OTAN, Jens Stoltenberg, “há diferenças reais entre os Estados Unidos e outros aliados em assuntos de comércio, mudança climática e acordo nuclear do Irã”.

“A boa notícia é que, apesar dessas sérias diferenças … não vemos nenhum enfraquecimento do vínculo transatlântico dentro da OTAN, vemos realmente um fortalecimento desse vínculo”, disse um Stoltenberg otimista.

Essas contendas foram menos comuns nos anos de Guerra Fria, contexto histórico que explica a criação da OTAN em 1949. Mas sobretudo após o fim da União Soviética, que encarnava o inimigo a ser combatido, as divergências surgiram com força. Sem pudor, a presidência de Trump expõe agora as fraturas dessa que é a maior instituição de segurança coletiva no mundo.

Tocando fogo no circo

Para alguns analistas, as declarações polêmicas de Trump no encontro servem ao propósito de criar o caos nas grandes cúpulas internacionais, principalmente quando elas reúnem os parceiros tradicionais.

A principal divergência na OTAN é a ira dos Estados Unidos com o que o governo americano considera baixo comprometimento financeiro dos países europeus. Desde sua campanha eleitoral, Trump critica os outros membros da organização nesse aspecto.

Em 2016, a OTAN teve um orçamento total de US$ 926 bilhões, dos quais 22% vieram dos Estados Unidos. Outras contribuições indiretas, que incluem pagamento de aposentadoria de pessoal, elevam o percentual para 67%.

O governo americano pressiona para mais contribuição dos aliados europeus, inclusive nos gastos nacionais gerais em defesa. No ano de 2017, os Estados Unidos destinaram 3,58% do PIB para defesa, seguido por Grécia (2,32%), Estônia e Reino Unido (2,14%), Romênia (2,02%) e Polônia (2,01%). Os demais aplicaram menos de 2%, percentual mínimo recomendado na conferência da OTAN em 2014, ano da incorporação da Crimeia à Rússia, evento que desencadeou a russofobia coletiva.

A demanda americana não é nova. Presidentes anteriores, incluindo o republicano George W. Bush e o democrata Barack Obama pressionaram os aliados europeus a contribuir mais.

A despeito da participação da OTAN na Guerra do Afeganistão, como bem lembrado pelo ex-secretário de Estado, John Kerry, Trump não é o maior fã das alianças tradicionais, as quais ele considera engessadas em grandes tratados e comprometimentos institucionais. Sua abordagem é mais à la carte.

De parceiro junior a grande rival

Mas as críticas de Trump à OTAN podem ter propósitos bem maiores do que simplesmente equilibrar a responsabilidade orçamentária.

O principal alvo dos ataques de Trump é a Alemanha, o país mais rico da Europa, concorrente dos Estados Unidos em vários setores industriais e, entre as grandes potências europeias, aquela que está geograficamente e politicamente mais próxima das zonas de potenciais conflitos no Leste Europeu.

Em 2016, a Alemanha gastou 1,22% de seu grande PIB (US$ 3,467 trilhões na época), pouco acima da metade do piso recomendado pela OTAN. Ao contrário dos Estados Unidos, onde despesas com defesa são geralmente bem vistas no imaginário político e popular, o governo alemão enfrenta a resistência sólida da população a gastos com armas e Forças Armadas.

Como Trump vem sendo muito bem orientado a colocar o dedo na ferida dos outros, sabe exatamente onde fazer doer para os alemães.

No mês passado, um tuíte do presidente sugeriu que o povo alemão estava se voltando contra as suas lideranças. Merkel teve enormes dificuldades para formar um governo desde as eleições do ano passado, perdeu apoio de um partido aliado e viu a extrema-direita se tornar a principal força de oposição no Bundestag.

Para o ex-embaixador dos Estados Unidos na OTAN, Nicholas Burns, Trump está tentando enfraquecer Angela Merkel. Para isso conta com a ajuda de Richard Grenell, atual embaixador americano em Berlim, que já declarou intenção de fortalecer o conservadorismo na Europa.

Num discurso diante de uma platéia animada em Montana no início do mês, Trump disse que mandou um aviso para a chanceler Angela Merkel.

“Eu disse, você sabe, Angela, não posso garantir, mas estamos lhes protegendo, e isso significa muito mais para vocês do que para nós, porque não sei quanta proteção nós ganhamos ao proteger vocês”.  

No primeiro dia da conferência, na semana passada, Trump lançou outra bomba retórica, acusando a Alemanha de ser “totalmente controlada pela Rússia” devido à dependência energética em relação à Rússia.

A expressão se refere ao acordo comercial russo-alemão de construção do gasoduto Nord Stream 2, que, por sua vez, é uma duplicação da linha (Nord Stream) que já leva gás natural russo diretamente para a Alemanha sem passar pelos países trânsito no Leste Europeu.

Condenar o gasoduto atende aos pedidos de alguns desses países, que além de divergir do Kremlin em muitos aspectos, perdem receita de transporte de gás.

Os Estados Unidos sempre boicotaram a segurança energética da Europa baseada no fornecimento russo, mas pouco podiam fazer na prática por não terem qualquer influência no mercado de gás. Com o desenvolvimento do gás de xisto americano na última década, o cenário mudou.

Em março, o secretário de Energia, Rick Perry, disse que a política energética dos Estados Unidos no Leste Europeu irá conter a Rússia.

Se antes os Estados Unidos eram um leão desdentado para garantir o fluxo de gás, agora têm uma alternativa na forma de gás liquefeito. Na verdade, mais do que conter a influência da Rússia, precisam escoar a superprodução doméstica de gás natural.

Do ponto de vista econômico, a compra de gás liquefeito pelos alemães não faz nenhum sentido. O gás americano chega na Europa a US$ 6/MMBtu, enquanto a Gazprom vende na média de US$ 5/MMBtu, sempre com margem para reduzir.

A Alemanha tem metas ambiciosas de transição energética para um paradigma verde. A chamada Energiewende é uma política de Estado implementada e continuada por várias décadas, sendo custo e fonte segura de abastecimento elementos cruciais para o sucesso dessa transformação. Portanto, dados os preços mais altos do gás liquefeito americano e a imprevisibilidade nas reservas de xisto no longo prazo, os Estados Unidos não podem garantir nem uma coisa nem outra.

Mas o ataque ao Nord Stream 2 também precisa ser entendido no contexto da política regional – de como as boas relações da Alemanha com a Rússia no campo econômico, cultural e político, muitas vezes, funcionam como barreira para os interesses dos Estados Unidos na Europa.

Ao “enfraquecer” a imagem da Alemanha como um país dependente da Rússia, Trump desperta traumas históricos (Alemanha subordinada) e ajuda a expandir a russofobia que tem dividido a sociedade alemã.

De um lado, políticos conservadores alemães e a grande imprensa vilanizam a Rússia e pressionam Berlim a confrontar Moscou. Do outro lado, empresários e partidos de esquerda tentam escapar da armadilha montada pelos neoconservadores e liberais intervencionistas dos Estados Unidos. Insistem que manter a cooperação com a Rússia não é apenas sensato do ponto de vista econômico, mas prudente para a segurança nacional da Alemanha.

Finalmente, a pressão atual sobre a Alemanha deve ser observada pela ótica da política global.

Círculos influentes dentro e fora da atual Casa Branca parecem pretender refazer a ordem internacional erguida com o poder dos Estados Unidos depois de 1945.

Na nova ordem imaginada, a Alemanha deixa de ser o parceiro junior e passa ao papel de inimigo número um, segundo o jornal alemão, Der Spiegel.

Concorrência desleal no comércio internacional, apoio indevido ao acordo nuclear do Irã e prepotência regional são alguns dos mal feitos atribuídos à Alemanha pelo novo grupo no poder americano.

Em 2016, a Alemanha teve um superávit mensal médio de 20 bilhões de euros, sendo 6 bilhões em comércio com os Estados Unidos. Por sua vez, estes tiveram o maior déficit comercial do mundo naquele ano: 500 bilhões de dólares.

Atingir o poder econômico da Alemanha requer atacar principalmente a sua indústria siderúrgica, o que Trump materializa na ameaça de aplicação de tarifas sobre importação de aço e alumínio. 

Talvez a Alemanha já tenha começado a ceder à pressão. Em 2019, o governo espera gastar 42,9 bilhões de euros com defesa, 10% a mais do que hoje. E a ministra da Defesa, Ursula von der Leyen, disse que esse número pode subir para 60 bilhões de euros em 2024. Mas algumas análises indicam que os gastos refletem a consciência de que é preciso construir uma força europeia sem os Estados Unidos.

Putin, o mediador?

Na segunda-feira seguinte à conferência da OTAN, Trump se encontrará com o líder russo em Moscou. A discussão deverá ser em torno do tratado de controle de armas nucleares, New START, Síria, Ucrânia e aumento da produção mundial de petróleo.

O encontro gera calafrios nos dois lados do Atlântico, uma vez que o establishment americano e boa parte da elite política europeia temem que Trump seja flexível com Moscou sobre sanções, direitos humanos e Kiev.

Para a Alemanha, a situação é incomodamente nova. Acostumada a agir como ponte entre os dois países, sente agora o risco de fogo amigo dos dois lados.

Definitivamente, os papéis se inverteram na relação triangular entre Estados Unidos, Rússia e Alemanha. Dada as boas relações de Trump com o presidente russo Vladimir Putin, é possível que este surja como mediador do desentendimento entre Berlim e Washington.

Na paranoia dos falcões da política externa americana, o pesadelo é que o encontro plante a semente de uma parceria com a Alemanha fora, a Rússia dentro e os Estados Unidos embaixo.

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