Documentário resgata atuação de ‘Corpos da Paz’ no Nordeste

Fernando Weller, diretor de “Em Nome da América”, recupera história dos voluntários do programa norte-americano que atuou no Nordeste durante a ditadura civil-militar

por Tatiana Carlotti

Na próxima quinta-feira (5 de abril), “Em Nome da América”, documentário de Fernando Weller, estreia nos cinemas das principais capitais do país. O filme resgata a história dos jovens voluntários do programa norte-americano Corpos da Paz que teve atuação no Nordeste brasileiro, nos anos 1960 e 1970.

Prêmio de melhor documentário na 41ª. Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, em 2017, “Em Nome da América” traz, com sensibilidade, as contradições desses voluntários que precisaram lidar com a dura realidade do Nordeste brasileiro e com o fato de os Estados Unidos terem apoiado a ditadura brasileira.

O documentário, inclusive, investiga a atuação das agências norte-americanas no país, trazendo excelente panorama sobre os conflitos do período na região. Em entrevista à Carta Maior, Fernando Weller, fluminense radicado em Pernambuco, conta mais sobre o filme. Acompanhem e confiram “Em Nome da América”, a partir da próxima quinta-feira, nos cinemas.

Fernando, o documentário traz várias vozes – do trabalhador, do coronel, do suposto espião da CIA, dos jovens voluntários, dos padres, dos sindicalistas – sobre um mesmo tema. Como você orquestrou essa pluralidade de opiniões?

Fernando Weller – Eu acho que um princípio básico de qualquer documentário é essa busca por uma visão mais complexa dos temas, o que não se confunde, para mim, com as pretensões de um jornalismo que quer (ou diz querer) ouvir um outro lado. No documentário, não existe esse outro lado, assim como não existe essa pretensão de objetividade. Há uma implicação total de quem realiza o filme com as pessoas e os temas que estão sendo abordados mesmo em um filme aparentemente sóbrio e sobre aspectos históricos como esse.

Em Nome da América durou, entre a ideia e a finalização, mais de 5 anos e durante esse tempo eu conheci diversos pontos de vista sobre os Corpos da Paz e sobre a influência americana no Nordeste dos anos 1960 e 1970. Embora haja essa pluralidade que você menciona, acredito que o filme apresenta, no fim das contas, também o meu ponto de vista implicado de sobre esses acontecimentos.

Acho que o filme é solidário aos personagens camponeses e pobres brasileiros que foram, afinal, os maiores prejudicados pela política da Guerra Fria implantada na região. É por isso que abro o filme com uma sequência de fotos do passado sobre a vida de “Seu” Damião, um lavrador em Bom Jardim, no interior de Pernambuco, e termino com o testemunho de outro “Seu” Dioclécio, um vendedor à beira-mar em Alagoas que vive à sombra da estátua da liberdade. Entre esses dois personagens há uma distância de 50 anos e, no fundo, uma linha de continuidade da que parece ainda hoje indestrutível. É sobre essa linha que gostaria de chamar a atenção do público.

O que te levou a produzir esse documentário e por que os voluntários da Paz? O conturbado momento que vivemos influenciou nessa escolha?

Fernando Weller – O filme surgiu de uma anedota, um caso curioso. Eu soube que na cidade de Afogados da Ingazeira, no Sertão de Pernambuco, havia um boato que Steven Spielberg teria vivido clandestino por lá nos anos 1960 fugindo da Guerra do Vietnã. Eu fui a Afogados e conversei com várias pessoas sobre a história e comecei a tomar conhecimento dos Corpos da Paz e de toda a trama de acontecimentos no Nordeste Brasileiro naquele período. O falso Spielberg era um voluntário da paz.

Apesar de não ter formação em história, eu trabalhei em arquivos e sempre tive uma paixão por documentos e por imagens do passado. O filme recebeu uma verba para desenvolvimento de roteiro pelo Funcultura, o Fundo de Cultura de Pernambuco, e essa verba me permitiu ir aos EUA e pesquisar nos Arquivos Nacionais. Então, a narrativa que começou como uma espécie de piada se tornou uma pesquisa maior envolvendo o contexto político e as contradições daquela época.

Nessa transformação do documentário, de fato, o contexto político brasileiro teve papel decisivo. Em 2013, houve o escândalo da espionagem dos e-mails da Dilma Rousseff pela Agência de Segurança Nacional dos EUA, o NSA, o que para mim foi o gatilho ou o prenúncio de tudo que nós começamos a viver no país a partir de então. Na hora da montagem de Em Nome da América, em pleno ano do golpe parlamentar de 2016, focar o filme em uma narrativa de busca por um personagem apenas curioso, parecia para mim totalmente deslocado. Era evidente que a história em torno da atuação americana nos anos 1960 e 1970 no Nordeste seria muito mais importante para refletirmos sobre nossa condição atual do que aquela sobre um falso Spielberg. Assim, o filme ganhou outra dimensão.

3. Há várias formas de se contar uma história. Você tinha um texto prévio, foi compondo junto às imagens? Por que documentário e não um livro, por exemplo, o que há de específico nessa linguagem que te agrada?

Fernando Weller – Bom, acho que fiz um documentário por uma explicação aparentemente muito simples: é o que aprendi a fazer durante a minha formação na área de cinema e é o que eu gosto de fazer. Certamente, um livro teria outra densidade sobre o mesmo tema. O livro de Cecília Azevedo, que nos emprestou o título para o filme, é uma referência importante sobre os Corpos da Paz, que recomendo a quem quiser se aprofundar sobre o tema. Um filme, no entanto, é outra coisa. É a possibilidade de ver e ouvir o relato emocionado de uma mulher que se lembra da “falta de carne” nas nádegas das crianças desnutridas que vacinou no Nordeste ou o olhar silencioso de um homem que se vê confrontado com a acusação de ter sido agente da CIA passados 50 anos da sua vinda ao país. A reação das pessoas às perguntas e à nossa presença às vezes incômoda nas situações de filmagem é o que se busca e o que se pode achar de melhor em um filme.

Quanto à organização do enredo, se eu pudesse, ainda estaria mexendo no filme, mas felizmente as pessoas que trabalharam comigo e a minha família não me deixariam tentar. Eu não tinha um texto prévio, mas vários textos rascunhados e não montei o filme a partir deles. Montei primeiro as imagens e o universo dos personagens para depois encontrar um discurso que, ao mesmo tempo, garantisse o meu ponto de vista e não sufocasse os pontos de vista de cada uma das pessoas que falam no filme. Não sei se deu certo, mas a intenção na montagem era essa.

Você poderia nos contar um pouco sobre as organizações dos EUA que atuavam naquele momento no Nordeste?

Fernando Weller – No início dos anos 1960 o Nordeste brasileiro obteve uma rápida e intensa fama internacional. As narrativas em torno do golpe de 1964 no Brasil são, quase sempre, focadas nos acontecimentos da região Sudeste ou de Brasília e nós pouco abordamos a centralidade que o Nordeste tinha naquele momento da Guerra Fria. O que eu pude observar na pesquisa que fiz para o documentário é a presença marcante da região em noticiários de TV, artigos de jornais, livros e pronunciamentos políticos. A seca e a fome no Nordeste alcançaram uma dimensão internacional. A Sudene, por exemplo, era uma instituição que recebia e articulava apoios de governos de vários países, como um fórum de status internacional. O escritório da USAID no Recife era um dos maiores do mundo na época. Certamente, essa fama internacional da região tornou-se um álibi para a implantação de diversos programas que tinham objetivos aparentemente nobres ou humanitários, mas que encobriam interesses políticos muito precisos. Não estou falando especificamente dos Corpos da Paz, que atuavam no mundo todo e pregavam um discurso, na superfície, independente da política externa norte-americana.

O que o filme demonstra é que no fim dos anos 1960, no Brasil, os voluntários começaram a atuar em cooperativas e sindicatos rurais criados desde antes do golpe de 64 por organizações suspeitíssimas. Essas instituições atuaram em parceria com a SORPE, uma organização de padres católicos em Pernambuco, financiando a compra de sedes sindicais e concedendo empréstimos em dinheiro. Os sindicatos foram criados com a clara intenção de disputar a massa de camponeses órfãos das extintas Ligas Camponesas de Francisco Julião. Então, o que o filme demonstra é uma profunda contradição. Os mesmos jovens que vinham ao Nordeste investidos de um espírito voluntário acabaram por atuar em programas cujos objetivos estavam muito além da suposta ajuda humanitária. Alimentou-se na região a promessa de um desenvolvimento econômico e social pacífico que, inversamente, deixou como legado a permanência das estruturas políticas e sociais no Nordeste até os dias de hoje. A tal revolução pacífica presente na retórica de Kennedy.

Uma das cenas mais impressionantes é a dos jovens, na Colômbia, debatendo o que eles estavam fazendo ali…

Fernando Weller – Esse arquivo é, para mim, um dos mais emblemáticos do filme porque condensa essa contradição que mencionei. Ali os voluntários foram filmados por uma equipe contratada pelos Corpos da Paz na Colômbia em um filme que deveria ser institucional, de propaganda, mas que se torna um documentário complexo e crítico ao programa de voluntariado. Há duas imagens, de Janis Joplin e Che Guevara, fixadas na parede na cena em que os voluntários se perguntam sobre os limites da sua atuação na Colômbia. Eles se perguntam se existiria, no fim das contas, alguma saída para a situação de subdesenvolvimento no país fora a Revolução.

Esses foram, para mim, os dilemas não apenas da maioria dos jovens voluntários, que se identificavam com um imaginário de esquerda, mas os dilemas de toda uma geração dos anos 1960. O arquivo do filme foi um dos mais difíceis de acessar. A versão em película dele estava perdida e achá-la foi um trabalho que envolveu algumas pessoas e tempo. Talvez, por ser um institucional que “se voltou contra o feiticeiro”, esse filme tenha permanecido tanto tempo escondido. Eu fico muito feliz de poder divulgar essas imagens ao público.

Na entrevista do suposto espião da CIA, você constrói uma tensão ao compor as imagens. Foi tenso daquela forma mesmo?

Fernando Weller – A principal fonte bibliográfica escrita nos anos 1970 e que foi lida com interesse pelos voluntários é o livro citado no documentário, A Revolução que Nunca Houve, de Joseph Page. Sobre o livro, há um fato interessante. A versão em português que li, com tradução de Ariano Suassuna, jamais cita o nome do espião da CIA que atuava no Nordeste, apenas citava a sua presença e a sua atuação. Conversando com os voluntários no processo de filmagem o nome do sujeito aparecia em diversos momentos e eu sempre perguntava a fonte que, para eles, era o livro de Page. Demorou muito a cair para mim a ficha de que o nome do espião constava na versão original do livro em inglês e tinha sido omitido na tradução brasileira. O motivo eu não sei.

O fato é que jamais imaginei que seria recebido na casa desse personagem que, apesar do clima realmente tenso presente na cena, recebeu a mim e a equipe de uma forma muito cordial. Acho que ele percebeu que não estávamos ali para julgá-lo. Eu prefiro não afirmar categoricamente que ele foi um espião da CIA e deixo essa conclusão para o público que assistir o filme.

O documentário mostra também o papel de setores da Igreja na desmobilização da Ligas Camponesas e nos faz pensar como as oligarquias locais atuam para sufocar a luta por direitos. Como você avalia isso hoje?

Fernando Weller – Para mim, não existe a possibilidade de se pensar em uma instituição religiosa que não esteja implicada em assuntos políticos. Foi assim na Igreja Católica na época e acredito que seja assim até hoje. Somos um país que tem uma poderosa bancada evangélica, seja lá o que isso signifique. Acho que a Igreja vivia as mesmas contradições que todas as outras instituições de governos ou não. A questão do desenvolvimento com ou sem revolução, da luta no campo e da reforma agrária, da democracia ou da falta de democracia, enfim, todos esses temas também fracionavam a Igreja em grupos de interesses.

O filme aborda, eu diria, uma ponta pequena sobre a atuação da Igreja Católica no movimento sindical rural em Pernambuco. Os testemunhos são claros ao afirmar que o dinheiro norte-americano financiou a compra e a manutenção de sedes de sindicatos rurais e que lideranças ligadas à Igreja foram enviadas aos EUA para treinamentos pelo chamado IADESIL, o Instituto Americano para o Desenvolvimento do Sindicalismo Livre. As cartilhas que tive acesso do instituto pregam a necessidade de um sindicalismo que abra mão de um projeto revolucionário em favor de “ganhos concretos” para o trabalhador. Que ganhos seriam esses, eu não sei.

Sobre as oligarquias locais, é justo afirmar que elas eram (e ainda são) tão arcaicas que mesmo as reformas liberais americanas com apoio de setores da Igreja eram vistas como ameaças comunistas. Na visão dos usineiros, qualquer proposta de modernização confrontava o poder do latifúndio e era percebida como subversiva. Basta ver o nível das falas e ações de alguns desses sujeitos mostrados nos filmes de arquivo do documentário. Enfim, não creio que a gente possa montar um quadro com apenas dois polos sobre a política na região daquela época. É bem mais complexo e mesmo a Igreja não era apenas uma instituição monolítica.

 

Artigo originalmente publicado em 02/04/2018, em: https://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Cultura-e-Arte/Documentario-resgata-atuacao-de-Corpos-da-Paz-no-Nordeste-/39/39752

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