Obamacare divide população e republicanos

O tom combativo e eufórico adotado pelos republicanos ao longo da campanha presidencial americana de 2016 deu lugar à prudência e a algum pessimismo. Em meio aos preparativos para a votação no Senado sobre a reformulação do chamado Obamacare, o líder da maioria nessa Casa, Mitch McConnell (R-KY), prefere manter um perfil baixo. Sua discrição contrasta com a fala segura e categórica, em março passado, do porta-voz da Câmara de Representantes, Paul Ryan (R-WI).

Naquele mês, a certeza inicial de uma aprovação tranquila e esmagadora não se confirmou. O texto sofreu a forte oposição do House Freedom Caucus. Composta de cerca de 30 republicanos mais conservadores e de libertários, essa bancada linha-dura defende medidas mais agressivas para reduzir os custos dos seguros, reduzir benefícios básicos, e acabar com a regulação federal no setor. Enfrentando oposição nas próprias fileiras, a liderança republicana foi forçada a recuar e retirou a pauta de votação no dia 24 de março.

Um novo projeto de lei foi aprovado na Câmara apenas em 4 de maio, com uma versão mais austera e em uma disputa apertada. Foram 217 votos a favor e 213 contra, entre eles 20 dissidências e nenhuma adesão democrata. Desta vez, depois de garantir uma emenda que dará aos estados a opção de autoexclusão (opt-out) das principais regras do Obamacare, o House Freedom Caucus concedeu seu apoio. Embora o clima tenha sido de vitória na Casa Branca, o ceticismo tomou conta do partido. Seu desfecho no Senado permanece incerto.

Para o senador Richard Burr (R-NC), o plano da Câmara já chegou “morto” ao Senado. Na verdade, ao invés de votar o controverso projeto da Câmara, a maioria republicana no Senado passou a escrever um projeto novo. John Cornyn (R-TX) acredita que uma votação aconteça até o fim de julho. Mesmo assim, muitos membros da Casa já consideram pouco provável que um substituto ao Obamacare possa ser aprovado ainda este ano.

Promessa de campanha

Desde 2015, o então candidato Donald Trump foi incansável na defesa de uma das principais bandeiras de sua enxuta plataforma política: acabar com o Obamacare e substituí-lo por outro programa de saúde. Mesmo assim, Trump sempre foi evasivo quanto ao que seria posto no lugar – referindo-se, de modo impreciso, a “alternativas”, “muitas coisas diferentes” e “uma grande coisa”. Em discurso no estado da Pensilvânia, em 1o. de novembro, pouco antes da eleição no dia 8, o magnata republicano garantiu que convocaria, assim que eleito, uma sessão especial do Congresso para “revogar e substituir” o que chamou de “catástrofe”.

Alguns dias depois, após reunião com Barack Obama, o recém-eleito presidente minimizou sua potência retórica e disse que não mexeria em algumas partes do plano. Entre elas, manteria a proibição aos seguros de saúde de negarem cobertura a condições preexistentes, mantendo também que filhos pudessem continuar como dependentes dos pais até os 26 anos. Ambas as medidas são bem recebidas pela população e por boa parte dos congressistas republicanos.

Primeiro ato executivo

Logo que assumiu, Donald Trump assinou várias ordens executivas, buscando dar corpo às suas principais promessas de campanha para “fazer a América grande de novo”. A primeira delas, de 20 de janeiro, justamente contra o Obamacare, intitulava-se “Minimizing the Economic Burden of the Patient Protection and Affordable Care Act Pending Repeal”. Uma prévia do que o Trumpcare pode vir a ser, o decreto foi entendido como uma maneira de enviar um recado e começar a esvaziar a legislação em vigor, secando recursos e descentralizando autoridades. Como afirma o texto do Executivo, lacônico e genérico, trata-se de “preparar para conceder aos estados maior flexibilidade e controle para criar um mercado de cuidados de saúde mais livre e mais aberto”. Isso inclui conceder, ou negar, isenções, adiar a implementação de qualquer provisão, ou exigência, do Obamacare que possa representar gastos para os estados, ou ainda, multas, impostos, ou regulações a indivíduos, famílias, operadoras de seguro, pacientes e outros agentes do setor.

Avaliação independente

Um relatório do Congressional Budget Office (CBO), divulgado em 24 de maio, expôs as dificuldades do projeto de lei aprovado pela Câmara. Segundo o texto, cerca de 14 milhões poderão perder sua cobertura médica até 2018, caso a nova lei seja aprovada em sua forma atual. Outro dado é que, em comparação ao Obamacare, por volta de 2026, o American Health Care Act (AHCA, já apelidado de Trumpcare) terá deixado quase 24 milhões de pessoas sem plano, além de aumentar em até 850% o valor do seguro para idosos, pessoas de baixa renda e com condições preexistentes.

Criticado pelos mais conservadores quanto à metodologia, o documento do CBO também aponta que o déficit no orçamento federal poderá chegar a US$ 119 bilhões em dez anos, se o texto for aprovado como está. O secretário americano de Saúde e Serviços Humanos, Tom Price, condenou duramente as conclusões do informe e garantiu que ninguém ficará desassistido. A guerra da informação entre a Casa Branca de Trump e a estrutura burocrática do sistema político americano parece não ter fim.

Equilíbrio difícil

Líder dos republicanos, o senador Mitch McConnell reconheceu que a aprovação da reforma do sistema de Saúde será difícil. Para que o texto seja levado à votação no plenário, é necessário o apoio de pelo menos 50 dos 52 membros republicanos, número que o senador sequer se inclina a dar como garantido. O grande desafio será encontrar um meio-termo entre as demandas de moderados e de conservadores de seu próprio partido. O único consenso até agora parece ser o de que o texto do Senado será bem diferente da versão aprovada pela Câmara, considerada excessivamente conservadora e sem proteção suficiente para pacientes com condição preexistente, por exemplo. De acordo com o senador John Cornyn (R-TX), os projetos de ambas as Casas coincidem em 70% a 80% dos pontos. McConnell teria, então, uma margem em torno de 30% de questões polêmicas para administrar.

McConnell declarou ainda que as divergências com os democratas nessa pauta são tão acentuadas, que será bastante difícil contar com algum voto de última hora. Hoje, são 46 senadores democratas e dois independentes, os quais costumam votar juntos. É uma maioria republicana pouco confiável. Em caso de empate (50-50), o vice-presidente Mike Pence dará o voto de minerva. Se aprovado, o próximo passo será conciliar as versões de ambas as Casas para sanção presidencial.

Enquanto os republicanos moderados se preocupam com os limites de recursos federais para a expansão do Medicaid e com os custos mais altos para idosos e para a população de baixa renda, os mais conservadores querem evitar novos direitos e obrigações, assim como mais intervenção da União na área da saúde, dando mais autonomia aos estados. Outro ponto de conflito diz respeito a exatamente quais subsídios do Obamacare seriam revogados. A um ano das midterm elections nos Estados Unidos, questões que afetam o cidadão tão diretamente pesam – e muito – no cálculo eleitoral.

Queda de braço entre moderados e conservadores

Rob Portman (R-OH), Shelley Moore Capito (R-WV), Cory Gardner (R-CO) e Lisa Murkowski (R-AK) representam a ala republicana moderada na questão da reforma da saúde. Em uma carta divulgada em março, advertiam que, além dos cortes de US$ 900 bilhões em recursos para o Medicaid, o projeto de lei da Câmara “não inclui estabilidade para as populações do Medicaid”. Outro problema seria a ausência de financiamento por um ano à Planned Parenthood (PP), organização dedicada ao planejamento familiar e muito criticada pela extrema direita por políticas relacionadas à prática do aborto. Lisa Murkowski e Susan Collins (R-ME) já avisaram que não vão apoiar cortes à PP.

Na ala mais radical, Rand Paul (R-KY), Ted Cruz (R-TX) e Mike Lee (R-UT) são contra a manutenção do Obacamare em si e, sobretudo, contra o Medicaid. Paul e Cruz defendem o fim de todas as regulações previstas e rejeitam até os poucos pontos de convergência entre as diferentes tendências do partido. Parecem ser dois votos difíceis com que contar em qualquer cenário. Ambos fazem parte do grupo que trabalha na redação da versão do Senado, o qual inclui o presidente da Comissão de Saúde, Educação, Trabalho e Pensões, senador Lamar Alexander (R-TN).

O maior esforço de Alexander tem sido chegar a um projeto de reforma que consiga passar pelo Senado com maioria simples de 51 votos (todos republicanos), por meio do processo de reconciliação orçamentária. Esse movimento evitaria a obstrução democrata. Segundo a chamada “regra Byrd” do Senado, projetos de lei aprovados dessa forma devem estar estritamente relacionados com orçamento (gastos, impostos, ou déficit), o que significa abordar um volume bem menor de pontos controversos sobre o Obamacare. Essa versão incluiria, entre outros temas, a redução gradual dos seguros e a transferência gradual para os estados de mais flexibilidade para tratar dos programas do Medicaid.

População também se divide

O Obamacare ainda conta com o apoio da maioria da população, mas, como mostram duas pesquisas publicadas no final de fevereiro deste ano, não é uma aprovação fácil, nem de ampla latitude.

De acordo com a última Health Tracking Poll da Kaiser Family Foundation, 48% dos americanos são favoráveis à legislação, e 42%, desfavoráveis. É o mais alto percentual de aprovação das mais de 60 enquetes de monitoramento realizadas pela instituição desde 2010. Entrevistados “independentes” – aqueles que não se identificam nem como democratas, nem como republicanos – são os mais satisfeitos. Quase 75% dos democratas aprovam, enquanto um percentual parecido de republicanos rejeita o plano. Na sondagem do Pew Research Center, o Obamacare tem o suporte de 54%, contra 43% de desaprovação. Também aqui, trata-se do percentual positivo mais alto já registrado pelo Pew Center.

Outra sondagem publicada na mesma época – POLITICO/Morning Consult – confirma a tendência. Pelo menos 45% dos eleitores registrados aprovam a lei, contra 45% que a rejeitam. Quando Trump assumiu a Presidência, em 20 de janeiro deste ano, essa relação era de 41% a 52%, respectivamente, segundo o Politico. Ainda, em pesquisa de final de março realizada pela AOL News, a reforma proposta pelos republicanos mostrou-se bem menos popular do que o Obamacare, preferido por 57% dos entrevistados, contra 30% de apoio a um possível Trumpcare. Pelo menos 13% não souberam responder.

A base do Obamacare

Sancionado em 23 de março de 2010, o Obamacare entrou em vigor em 2014, com o objetivo de ampliar o número de americanos com seguro de saúde em um país desprovido de uma rede pública de atendimento nessa área. Desde 2010, os republicanos recorreram a diferentes instâncias da Justiça para impedir sua entrada em vigor. Em 2012, a Suprema Corte encerrou essa disputa, pronunciando-se pela constitucionalidade da lei. O Obamacare torna obrigatória, para todos os cidadãos, a adesão a um plano de saúde, sob pena de multa, e expande o público atendido pelo Medicaid – um dos pontos mais espinhosos para os republicanos. Companhias com mais de 50 funcionários ficam obrigadas a oferecer planos de saúde para seus funcionários, ou serão multadas. Em 2013, cerca de 44 milhões (16% da população) não tinham plano de saúde nos EUA. Esse grupo inclui pessoas não atendidas pelo Medicaid, pelo Medicare (para idosos), nem pelos seguros de saúde fornecidos pelas empresas a seus funcionários.

Em 2017, 12,2 milhões de americanos se inscreveram no Obamacare. Deste total, 31% são novos usuários, enquanto os demais incluem mudanças de plano. De acordo com o National Center for Health Statistics, o número de cidadãos sem seguro nos Estados Unidos teria atingido um piso histórico, mantendo essa tendência. Nos primeiros nove meses de 2016, 28,2 milhões de pessoas (8,8% da população) ainda se encontravam nessa condição, contra 48 milhões em 2010. Ainda é cedo para avaliar o impacto dessa reforma como um todo nos EUA, seja na economia, seja na saúde da população, o qual talvez seja observável em uma, ou várias gerações. Por enquanto, o dado concreto (e positivo) é que há mais pessoas com cobertura.

por Tatiana Teixeira

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