China e Rússia

A política dos Estados Unidos para a Ucrânia nos 100 dias de Trump 2.0 

O vice-presidente dos EUA, J.D. Vance, e o secretário de Estado, Marco Rubio, acompanham a reunião entre Trump e o presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, na Casa Branca, em Washington, D.C., em 28 fev. 2025 (Crédito: Casa Branca/Daniel Torok/Flickr)

Dossiê “100 dias de Trump 2.0” 

Por Gustavo Oliveira* [Informe OPEU] [100 dias] [Trump 2.0] [Guerra na Ucrânia] 

Os primeiros 100 dias do governo de Donald Trump foram marcados por indicativos de importantes transformações em diversos eixos da política externa dos Estados Unidos. Entre eles, destaca-se, certamente, a política do novo governo estadunidense com relação à Ucrânia. 

Isso pôde ser percebido, principalmente, na abordagem do governo Trump sobre a Guerra russo-ucraniana, cujo rápido encerramento tem sido uma das principais promessas do republicano. Os primeiros meses do governo Trump foram marcados pela intensificação de negociações sobre o fim do conflito. No processo de conversações, Trump já declarou que a Ucrânia não deve ingressar na Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), proposta que também foi incluída no plano de paz apresentado pelo governo dos Estados Unidos em abril. 

É verdade que o governo Biden já negava a possibilidade de entrada da Ucrânia na OTAN em um futuro próximo, afirmando que o país deveria implementar reformas domésticas para aderir à aliança. Trump, no entanto, foi além, ao indicar sua oposição como uma questão de princípio e associá-la, implicitamente, à posição da Rússia sobre o tema. Dessa maneira, Trump efetivamente desfez o compromisso assumido na Cúpula de Bucareste de 2008 da OTAN, referente à promessa de admissão da Ucrânia na organização. 

Além disso, outra mudança crucial sinalizada pelo governo Trump é a disposição para reconhecer, de jure, o controle de Moscou sobre pelo menos parte dos territórios ucranianos sob ocupação russa. O plano de paz apresentado pelo governo Trump continha a proposta de reconhecimento, por parte dos Estados Unidos, da soberania russa sobre a Crimeia. Trump disse considerar que a anexação da região pela Rússia, em 2014, é irreversível. Dessa maneira, a administração republicana sinaliza possíveis rupturas com uma política de mais de três décadas – incluindo o primeiro mandato do próprio Trump (2017-2021) – de compromisso com a integridade territorial da Ucrânia. 

Por fim, uma outra importante particularidade da política do novo governo Trump é o foco no aspecto econômico das relações com a Ucrânia. Uma das principais iniciativas dos dois países desde que Trump se tornou presidente tem sido as negociações de um acordo de exploração de recursos naturais da Ucrânia, que resultaram na assinatura, pelos dois governos, de um documento-base em 30 de abril. A proposta de exploração de recursos ucranianos, centrada nos minerais, foi inicialmente levantada pelo próprio governo do presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, ainda antes da vitória eleitoral de Trump, como uma espécie de contrapartida pelo apoio militar fornecido pelos EUA e por outros países ocidentais. Trump, contudo, trouxe esse tema para um lugar prioritário nas relações bilaterais, fazendo extensas demandas e exercendo forte pressão sobre o governo ucraniano, com vistas a obter benefícios econômicos para os EUA. Além do acordo sobre recursos naturais, o governo estadunidense demonstrou interesse em gerir a usina nuclear ucraniana de Zaporizhzhia – a maior da Europa, ocupada pela Rússia desde 2022 –, incluindo tal proposta no plano de paz de abril. 

Relações com a Ucrânia apontam importantes elementos da política externa de Trump 2.0 

Apesar do estilo errático de Trump e das incertezas quanto à forma final e aos resultados de suas iniciativas, pode-se dizer que esses elementos da política dos Estados Unidos para a Ucrânia expressam certas tendências da política externa do governo atual. Em primeiro lugar, as propostas relativas à OTAN expressam a intenção de reduzir o envolvimento dos Estados Unidos nas dinâmicas de segurança na Europa. Ao assumir descartar a entrada da Ucrânia na OTAN, o governo dos Estados Unidos se distanciou da política de “portas abertas” da aliança – algo de que Washington jamais declarara abdicar desde o início da expansão da aliança no Pós-Guerra Fria, incluindo em negociações com a Rússia durante a crise que precedeu a invasão russa à Ucrânia de 2022. Assim, Trump 2.0 rompe com a política dos Estados Unidos para a Europa no Pós-Guerra Fria, que tinha como um de seus elementos fundamentais a ideia de uma expansão inexorável do sistema de segurança continental liderado pela aliança militar atlântica. 

President of Ukraine visits NATO | NATO Secretary General Je… | Flickr(Arquivo) O então secretário-geral da OTAN, Jens Stoltenberg, com o presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelenskyy, na sede da organização, em Bruxelas, em 27 jun. 2024 (Crédito: OTAN/Flickr)

A tendência de redução do envolvimento norte-americano na segurança da Europa também é perceptível na recusa em oferecer garantias de segurança militares à Ucrânia (à similaridade de governos anteriores em Washington, ressalte-se) e na proposta de delegar tal responsabilidade, primariamente, a países europeus. Uma das principais demandas de Kiev para a solução da guerra, como compensação pela renúncia à entrada na OTAN, garantias desse tipo consistiriam de obrigações similares às do Artigo 5 do tratado da aliança – o que elevaria o risco de envolvimento direto dos Estados Unidos em uma guerra na Europa, confrontando a Rússia. Essa iniciativa ocorreu em meio a cobranças explícitas do governo Trump por um papel mais ativo dos países europeus na garantia de sua própria segurança, uma vez que os Estados Unidos não mais estariam dispostos a ser, nas palavras do secretário de Defesa, Pete Hegseth, “os únicos garantidores da segurança europeia”.  

Uma segunda importante implicação da abordagem do governo Trump com relação à Ucrânia diz respeito à questão territorial. A disposição para o reconhecimento da jurisdição russa sobre a Crimeia revela o reconhecimento de que a força se impõe sobre normas internacionais. Evidentemente, seria ingênuo assumir que há uma plena coerência entre os países, na prática, quanto às normas de respeito à soberania e à integridade territorial dos Estados. Basta citar, nesse sentido, o histórico dos próprios Estados Unidos. De todo modo, um reconhecimento da anexação russa representaria um novo desafio às normas internacionais, em um contexto no qual Trump expressa abertamente o interesse em estabelecer algum tipo de controle estadunidense sobre outros territórios, como a Groenlândia e o Canal do Panamá. 

Deve-se ressaltar, ainda, que a maior atenção às questões econômicas pode ser entendida como uma manifestação do elemento economicista típico da abordagem de política externa de Trump. Essa característica diz respeito não só a uma agressiva busca de vantagens econômicas para os Estados Unidos, como também à ideia de que benefícios oriundos de projetos de negócios podem ser um canal para a resolução de conflitos, sobrepondo-se a aspectos políticos e de segurança por trás destes últimos. A lógica economicista esteve presente, por exemplo, nos planos de paz para as questões Palestina-Israel e Sérvia-Kosovo propostos pelos Estados Unidos na primeira Presidência de Trump. No caso atual da Ucrânia, a abordagem economicista foi simbolizada por declarações de Trump e seu vice, J.D. Vance. No entendimento de ambos, projetos de negócios e a presença econômica dos Estados Unidos na Ucrânia seriam garantias de segurança em si mesmas para o país, em vez do apoio militar norte-americano – que Trump sinaliza querer reduzir. Na mesma linha, a Casa Branca afirmou que a parceria na exploração de recursos naturais ucranianos seria “uma forte mensagem à Rússia”, pois demonstraria o compromisso dos Estados Unidos com o “sucesso em longo prazo” da Ucrânia. 

Por fim, em se tratando de relações Estados Unidos-Ucrânia, também é preciso considerar as implicações das relações do governo Trump com a Rússia. É nítido que Trump não abraça a visão adversária que pautou a política dos Estados Unidos para a Rússia desde 2014. A guerra na Ucrânia e as tensões com Moscou são vistas pelo novo governo norte-americano como uma distração em relação às questões que Trump considera serem prioridades dos Estados Unidos, como a recuperação da economia estadunidense (dentro do entendimento trumpista de tal recuperação) e a confrontação geopolítica com a China. Além disso, cabe mencionar que a Rússia é um país com um mercado e dotação de recursos mais extensos do que a Ucrânia. A normalização de relações com a Rússia representa, portanto, uma atrativa oportunidade do ponto de vista da abordagem economicista de Trump, bem como de setores do empresariado dos Estados Unidos. Não por acaso, os governos dos dois países têm explorado, ativamente, o aspecto econômico em suas relações, tema que também foi incluído pelos Estados Unidos no plano de paz proposto em abril. 

A aparente priorização do envolvimento com Moscou é simbolizada pelo papel do representante de Trump para as relações com a Rússia, o advogado e empresário do setor imobiliário Steve Witkoff. Amigo pessoal e parceiro de golfe de Trump, Witkoff, que indicou publicamente maior receptividade para os pontos de vista da Rússia sobre a guerra, tem ocupado um lugar de destaque na diplomacia dos Estados Unidos. Uma posição bem diferente daquela desfrutada pelo enviado de Trump para as relações com a Ucrânia, o militar aposentado Keith Kellogg, visto como mais simpático à Ucrânia. Embora, isoladamente, não sejam garantia de uma melhoria consistente de relações, os fatores mencionados acima representam um potencial passo para afirmar a reaproximação entre Washington e Moscou, ao indicarem o reconhecimento, por parte dos Estados Unidos, da legitimidade de diversos interesses da Rússia. 

File:Steve Witkoff at White House Opioids Summit 2018.png - Wikimedia  Commons(Arquivo) Steve Witkoff e o então presidente Donald Trump, em cerimônia na Casa Branca, em Washington, D.C., em 1º mar. 2018 (Fonte: Wikimedia Commons)

Assimetria de poder favorece Trump 

Em uma sociedade exausta por três anos de guerra, a chegada de Trump ao poder, com suas promessas de uma paz rápida, foi vista inicialmente de maneira positiva por muitos ucranianos. Entretanto, à medida em que Trump buscou se aproximar da Rússia e passou a exercer intensa pressão sobre Kiev, cresceu fortemente na Ucrânia a desconfiança quanto a sua figura e a seu papel em uma possível resolução do conflito. A percepção de que a Presidência de Trump seria negativa para a Ucrânia, potencialmente trazendo uma paz vista como injusta e favorável aos interesses de Vladimir Putin, também se fortaleceu. Nesse contexto, as tensões e as divergências entre Kiev e Washington, simbolizadas pelo escândalo da discussão entre Zelensky, Trump e J.D. Vance na Casa Branca em fevereiro último, também parecem ter contribuído para reverter uma tendência de queda da popularidade do presidente ucraniano. 

É preciso lembrar, contudo, que a Ucrânia se encontra em uma situação de enorme dependência com relação aos Estados Unidos. O apoio militar e econômico de Washington é crítico para a capacidade de resistência ucraniana contra a Rússia, especialmente diante da ausência de substitutos críveis para o apoio dos Estados Unidos – seja pela maior dificuldade de mobilização de recursos, seja pela relutância política das potências europeias em se envolverem de maneira mais intensa na segurança da Ucrânia. Além disso, deve-se mencionar as inerentes dificuldades de curto prazo que a Ucrânia enfrenta para elevar as capacidades de seu complexo industrial-militar. 

Em conjunto, esses fatores formam uma assimetria de poder que constitui um trunfo para Trump. A maior abertura do governo ucraniano às suas iniciativas, após a curta suspensão do apoio militar norte-americano em 2025, foi um desdobramento ilustrativo dessa assimetria. A diminuição do discurso crítico contra Zelensky também sugere que Washington tem tido significativo sucesso em fazer o governo ucraniano se envolver em suas iniciativas. Mesmo com resistências, portanto, o governo Trump 2.0 tem feito consideráveis avanços em sua agenda para a Ucrânia.

 

* Gustavo Oliveira é doutor em Relações Internacionais pelo Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas (Unesp, Unicamp, PUC-SP) e pesquisador do INCT-INEU. Contato: gustavotm91@gmail.com.

** Revisão e edição: Tatiana Teixeira. Primeira versão recebida em 30 abr. 2025. Este Informe OPEU não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU. 

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