Dossiê

A precariedade da vida das mulheres nos EUA e os ecos distópicos de Gilead 

As aias de Gilead, da série baseada no livro de Margaret Atwood (Fonte: Reprodução da série)

Dossiê “Distopias e Trump 2.0” 

Por Amanda Lago* [Informe OPEU] [100 dias] [Trump 2.0] [Distopias e Trump 2.0] [Dossiê] 

O conto da aia – Editora RoccoEsta análise trará a evolução dos direitos das mulheres nos Estados Unidos, contrastando os avanços notórios durante os primeiros 100 dias do governo Joe Biden (2021-2025) com os retrocessos observados no mesmo período do segundo mandato de Donald Trump (2025-). Além disso, estabelece paralelos entre as políticas implementadas e o universo distópico de Gilead, apresentado na obra O conto da aia (Editora Rocco, 2017) e em sua sequência, Os testamentos (Rocco, 2019), de Margaret Atwood. Espero que todos os temas e críticas expostos sejam uma oportunidade de discussão sobre a deterioração dos direitos civis e o paralelo entre ficção e realidade.

Contextualização de Gilead 

Em uma realidade futura, os Estados Unidos têm seu Estado completamente reorganizado, levando ao que conhecemos na história como Gilead. Um país regido por um regime teocrático e totalitário, originado de um golpe de Estado. Nessa estrutura política, a mulher é considerada, exclusivamente, como um objeto que, pela ordem do Divino (que seria Deus), serve apenas para reprodução e trabalhos laborais domésticos. Aqui, argumentos e artefatos religiosos são usados como arma de coerção da população. 

Como mencionado, esse regime foi instalado nos EUA via golpe de Estado, que aconteceu depois da morte do presidente e dos membros do Congresso em um suposto ataque terrorista (não darei detalhes para evitar spoiler). Desde então, a Bíblia e os dogmas cristãos passaram a ser as normas que regeriam o país de forma rígida e, muitas vezes, com base em leituras distorcidas que buscavam sempre beneficiar os homens das camadas mais ricas, conhecidos como “os Comandantes”. Com essas novas políticas estabelecidas, o país agora se encontra em um sistema inflexível, não democrático e baseado em uma estrutura estamental hierárquica praticamente sem chances de ascensão social. Nela, todo o poder é concentrado nas mãos dos homens, mais especificamente, os homens pertencentes à elite. Em paralelo a isso, as mulheres têm seus direitos arrancados de si, sendo reservadas a elas apenas funções específicas, como esposas e aias, responsáveis pela reprodução; Martas, trabalhadoras domésticas; e Tias, instrutoras das aias.  

Por mais que seja um país controlado por homens, o foco da história é o protagonismo feminino e, principalmente, como esses corpos são expostos durante a narrativa. No plano principal, têm-se as aias, que são as responsáveis por gestar os filhos das mulheres dos Comandantes, uma vez que as mulheres deles são, alegadamente, inférteis, por conta de uma contaminação que afetou seu sistema reprodutivo. Antes da fundação de Gilead, os Estados Unidos sofreram guerras, desastres nucleares e poluição industrial em larga escala, o que afetou severamente a fertilidade de sua população. Esse processo de procriar acontece em forma de um “ritual religioso” (na verdade, eufemismo de um ato sexual imposto) e que pode levar a severas punições, caso a aia não siga as normas do “ritual” à risca. Todas essas questões servem para mostrar como a protagonista da trama utilizou o corpo e a sexualidade feminina como uma arma política e como um instrumento de proteção contra ela mesma. 

Apesar de estar inserida nesse sistema de opressão, a protagonista, a aia Offred, e outras mulheres também submetidas ao sistema de procriação contra sua vontade, encontram formas de resistência: seja por meio de memórias, até porque todas elas já tiveram uma vida de liberdade e de direitos mínimos garantidos antes do golpe estatal; seja por pequenos atos de desobediência; seja por alianças secretas. A narrativa mostra como a resiliência humana, a memória e a identidade pessoal e coletiva são os pilares mais essenciais na luta contra regimes opressivos. Por isso, é notório que O conto da aia sirva como um alerta sobre os perigos do extremismo religioso e do autoritarismo, dois fenômenos cada vez mais presentes e disseminados, juntos. Embora tenha sido publicada pela primeira vez em 1985, a obra ressalta debates atuais sobre direitos reprodutivos, igualdade de gênero e separação entre igreja e Estado.  

Margaret Atwood diz ter-se baseado em eventos históricos e em práticas reais, algumas das quais remontam ao período da escravidão nos EUA, com as “aias” se assemelhando às mulheres escravizadas, usadas como “reprodutoras” no Sul do país antes da abolição. O regime puritano, na Nova Inglaterra, também serviu de inspiração, por sua teocracia rígida, repressão moral e tratamento das mulheres como subordinadas. Também foi utilizado como base para a história a Revolução Islâmica do Irã, em que as mulheres foram obrigadas a seguir uma série de leis restritivas na esteira desse evento, incluindo o uso obrigatório do véu, a proibição de ocuparem cargos públicos e a perda de direitos legais. 

BacklashPor fim, a autora menciona outros três eventos ocorridos no passado que também guiaram sua escrita. Um deles é o “Nazismo e Lebensborn”, o programa criado por Heinrich Himmler, que incentivava mulheres arianas a engravidarem de oficiais para aumentar a “raça pura” alemã – exatamente o que pode ser visto em Gilead. O outro foram os Campos de Reeducação e Vigilância Estatal, implementados por regimes autoritários, como o da então União Soviética e o da China maoísta, que utilizavam campos de trabalho, vigilância em massa e punições exemplares para controlar a população.

No caso do terceiro, Margaret Atwood recuperou os ideais do movimento antifeminista dos anos 1980, analisado por Susan Faludi em seu livro Backlash: The Undeclared War Against American Women (Crown, 1991). A obra denuncia como, durante o governo de Ronald Reagan (1981-1989), houve uma onda extremamente conservadora nos Estados Unidos que incentivava papéis tradicionais de gênero, promovia a ideia do “lar cristão tradicional” e atacava diretamente as conquistas do movimento feminista. Faludi mostra como esse período foi marcado por uma repressão em massa da tentativa de emancipação feminina, o que se reflete na estrutura estabelecida em Gilead, onde a mulher é reduzida a funções estritamente reprodutivas e subordinadas aos homens. 

Por ser um regime totalitário, o acesso à informação e à educação são severamente restringidos: mulheres são proibidas de ler, estudar, frequentar escolas, ou ter posses. Nessa realidade opressora, elas são apenas adereços de seus Comandantes. São constantemente supervisionadas pelas Marthas, nas casas de seus senhores, para garantir seu bom comportamento, além de receberem visitas e treinamentos periódicos das Tias, mulheres designadas para disciplinar e treinar as aias para bem servirem aos seus senhores. Caso sejam pegas fazendo qualquer tipo de coisa que não seja relacionada com suas funções, serão severamente punidas. Isso significa ter partes de seus membros decepados ou queimados, genitálias cortadas, bocas costuradas, entre várias outras formas de tortura. Isso clarifica como um ambiente de medo é essencial para controlar uma população que está insatisfeita com sua situação.  

Paralelos com a Gilead trumpista 

Antes de mencionar o atual governo de Donald Trump, é necessário voltar um pouco no tempo para uma breve análise das políticas adotadas no governo de Joe Biden (2021-2025) e de como elas impactaram, significativamente, a realidade das mulheres em seu país. Em seus primeiros 100 dias de governo, o democrata adotou medidas significativas, com o intuito de promover a igualdade de gênero e políticas para proteger os direitos das mulheres. Ao longo de seu período na Presidência, foi claro seu interesse em continuar a promover e a financiar direitos e serviços de saúde sexual e reprodutiva para todos. 

Um exemplo foi a revogação da “Regra da Mordaça Doméstica”, para pôr fim à política que limitava o acesso a serviço de saúde reprodutiva financiado pelo “Título X”. Trata-se de um programa federal administrado pelo Escritório de Assuntos Populacionais (OPA) do Departamento de Saúde e Serviços Humanos (HHS), estabelecido em 1970. Dedicado exclusivamente ao financiamento de serviços de planejamento familiar e saúde reprodutiva para pessoas de baixa renda ou sem seguro de saúde, o Título X voltou a ser mencionado com frequência na gestão Biden, demonstrando o apoio do governo a clínicas provedoras de serviços de apoio a mulheres que desejassem passar pelo processo de aborto, assim como o comprometimento com os direitos globais reprodutivos. 

Ainda em seus primeiros 100 dias de governo, Biden aprovou a “Ordem Executiva 14020”, assinada em março de 2021, criando o Conselho de Políticas de Gênero da Casa Branca. Após implementado, o organismo foi encarregado de coordenar esforços federais para promover a equidade e a igualdade de gênero, abordando questões como preconceitos sistêmicos, assédio sexual e direitos das mulheres.  

Em contrapartida, ao analisarmos os primeiros 100 dias de Trump 2.0, observamos um retrocesso nessas temáticas. Esse período foi marcado por restrições ao acesso a esses serviços, revogando-se as medidas que protegiam o acesso ao aborto. Isso inclui a reinstauração da política “Cidade do México”, que proíbe o financiamento de organizações internacionais que oferecem ou apoiam o aborto. Além disso, o presidente anunciou cortes no financiamento do “Título X”, mencionado acima como uma das adesões das políticas de Biden. Esses fundos foram congelados para organizações que prestam serviços de saúde reprodutiva a comunidades de baixa renda, afetando cerca de 840 mil pacientes. Em seu primeiro dia de governo, em 20 de janeiro, já tinha sancionado a ordem executiva 14168, intitulada “Defendendo as Mulheres do Extremismo da Ideologia de Gênero”, uma política que redefiniu o sexo exclusivamente com base em características biológicas, excluindo e marginalizando pessoas transgênero. 

A proclamação de uma nova Gilead 

Diferentemente da ficção, não há, nos EUA do presente, leis que obriguem as mulheres a servirem unicamente como instrumentos de reprodução. Ainda assim, as tentativas constantes do Estado de reafirmar seu controle sobre o corpo das mulheres e sobre suas decisões reprodutivas, por meio da restrição de auxílios básicos, encontra paralelos com políticas repressivas de Gilead. Estamos falando, por exemplo, das práticas de “Coerção Reprodutiva e Contracepção de Longo Prazo” que interferem, diretamente, na autonomia corporal. Em estados como o Alabama, governado pelo Partido Republicano (mesmo de Trump), mulheres relataram pressões para aceitarem métodos contraceptivos duradouros, como os dispositivos intrauterinos (DIUs), muitas vezes sem terem recebido um pleno consentimento. Alguns pacientes enfrentaram resistência ou recusa por parte de profissionais de saúde, ao solicitarem a remoção desses dispositivos. Especialistas em Justiça reprodutiva classificam essas práticas como formas de “esterilização suave”, uma prática que tem um triste histórico de controle reprodutivo direcionado a populações marginalizadas.   

Reproductive Health Services Montgomery | Montgomery Alabama… | Flickr(Arquivo) Cartazes pelos direitos das mulheres colocados na entrada do prédio dos Serviços de Saúde Reprodutiva Montgomery, na cidade de mesmo nome, no Alabama, em 16 jul. 2015 (Crédito: Robin Marty/Flickr)

Somada ao controle dos corpos femininos, há a crescente onda de supressão da identidade de gênero no plano real e no ficcional. Ainda em O conto da aia, aquelas que vão contra o que seriam “mulheres ideais” – ou seja, servem apenas para gerar filhos e para atender as necessidades e caprichos dos Comandantes – sofrem algum tipo de punição e passam a ser classificadas como “traidoras do gênero”. Se não for possível “convertê-las”, serão apedrejadas. Uma das aias, OfWarren, originalmente chamada de Janine, ao ser identificada como lésbica, tem seu clitóris cortado. Na lógica de Gilead, se ela não sentisse mais prazer, voltaria ao “normal” e seguiria com sua função de procriar.  

Não tão distante disso, Trump vem implementando em suas políticas abordagens que também remetem à supressão da identidade de gênero, como o relatório “Treatment for Pediatric Gender Dysphoria: Review of Evidence and Best Practices” (Tratamento para Disforia de Gênero Pediátrico: Revisão de Evidências e Melhores Práticas). O documento promove a “terapia exploratória de gênero”, considerada por muitos especialistas como uma forma de terapia de conversão, e desaconselha tratamentos médicos afirmativos para jovens transgêneros. Organizações médicas, como a American Academy of Pediatrics e a American Psychological Association, criticaram o relatório, por distorcer evidências científicas e comprometer a integridade da pesquisa. Embora, do ponto de vista institucional, o relatório tenha sido anunciado como fruto de uma pesquisa concluída, não é considerado, consensualmente, por seus pares na academia como uma versão científica “fechada”. O texto ainda pode ser corrigido ou atualizado com base nas críticas e observações feitas durante a revisão pública e comentários dos pares. Entre outras políticas com o objetivo de marginalizar esse grupo populacional, temos, ainda, a proibição de homens transgênero no Exército, censuras acadêmicas e restrições de conteúdos de gênero e supressão de dados e pesquisas sobre identidade de gênero. 

Mais um exemplo é a Ordem Executiva 14187, intitulada “Protegendo Crianças de Mutilações Químicas e Cirúrgicas”. Emitida em 28 de janeiro de 2025, ela proíbe o financiamento federal para cuidados de afirmação de gênero para menores de 19 anos, incluindo bloqueadores de puberdade, terapias hormonais e cirurgias. O texto também instrui agências a revisarem políticas de seguro e financiamento para garantir conformidade com essa proibição. Também digno de nota é a Revogação de Proteções de Direitos Civis e Políticas de Diversidade, por meio da qual o governo Trump anulou ordens executivas anteriores que promoviam a equidade racial e de gênero, eliminando, entre outros, programas de Diversidade, Equidade e Inclusão (DEI) em agências federais. Além disso, revogou uma ordem executiva de 1965, que exigia igualdade de oportunidades de emprego para todos. 

Saiba mais sobre o desmonte das políticas DEI neste episódio do programa Diálogos INEU

A análise dos primeiros 100 dias das administrações Biden e Trump revela, portanto, trajetórias opostas em relação aos direitos das mulheres nos Estados Unidos.

Aos exemplos, mencionados acima, sobre como o democrata buscou restaurar e promover a igualdade de gênero, acrescento mais alguns, ilustrativos do meu argumento. Biden também sancionou medidas como a Ordem Executiva 13988, que visava à proteção contra discriminação com base na identidade de gênero ou orientação sexual. Essa OE direcionou todas as agências federais a revisarem e estenderem as proteções contra discriminação com base no sexo para incluir identidade de gênero e orientação sexual, conforme interpretado na decisão da Suprema Corte em “Bostock vs. Clayton County”. Temos ainda Ordem Executiva 13985, que exigia que todas as agências federais desenvolvessem planos para promover a equidade racial e social, com foco em comunidades historicamente marginalizadas. E as Iniciativas de Saúde das Mulheres e Reprodutiva, em que o conselho lançou um projeto de US$ 100 milhões para financiar pesquisas dedicadas às necessidades de saúde das mulheres.

O republicano, por sua vez, vem adotando políticas que restringem esses direitos e se aproxima, perigosamente, do cenário aqui retratado. Nesse contexto específico, a concentração de poder e a implementação de políticas que limitam direitos fundamentais nos EUA nos lembram a estrutura autoritária, teocrática e opressiva dessa distopia. E, tendo em vista o rumo da história tomado pela série homônima e pelos livros, é de suma importância reconhecer e resistir a essas tendências, para garantir que os direitos conquistados não sejam perdidos e que os EUA não se tornem uma nova Gilead.

 

* Amanda Lima Lago é graduanda do 5º semestre em Relações Internacionais no Centro Universitário Armando Álvares Penteado (FAAP). Participa ativamente de grupos de estudo e atividades relacionada às simulações da ONU, como o Fórum FAAP. Tem interesse nas áreas de cyberpolitics e cybersecurity. Contato: Lagoamanda2004@gmail.com. 

** Revisão e edição: Tatiana Teixeira. Recebido em 9 de maio de 2025. Este conteúdo não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU. 

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