América Latina

A jornada latina e a busca do ‘sonho americano’ 

‘Conto de fadas que deu errado – o novo sonho americano’ (Crédito: Tumra Needi/Flickr)

Dossiê “100 Dias de Trump 2.0” 

Por Sophie de Oliveira* [Informe OPEU] [100 dias] [Trump 2.0] [Sonho americano] [Latinos]

O império do consumo e o American Way of Life 

Durante o século XX, especialmente no pós-Segunda Guerra Mundial, os Estados Unidos consolidaram sua imagem como a terra das oportunidades por meio de um poderoso aparato de propaganda cultural. A Coca-Cola, por exemplo, foi usada como símbolo do American Way of Life, associando consumo à liberdade e à felicidade. O cinema de Hollywood reforçou esse ideal com filmes que promoviam o estilo de vida americano como modelo global, especialmente entre países latino-americanos, marcados por instabilidade política e escassez econômica. 

Como analisa Victoria de Grazia no artigo “Irresistible Empire: America’s Advance through Twentieth-Century Europe” (2008), essa construção cultural, estabeleceu um império irresistível” baseado no poder brando (soft power). Produtos, comportamentos e valores estadunidenses passaram a ser vistos como sinônimos de progresso. Não por acaso, milhões de latino-americanos migraram, continuam migrando ou sonharam em migrar para os EUA em busca dessa vida idealizada. Entretanto, a realidade atual desafia esse imaginário. 

O endurecimento das fronteiras: deportações em massa 

Com o retorno de Donald Trump à Presidência dos Estados Unidos, a política migratória voltou a se endurecer. Embora parte dessas medidas tenha se iniciado na gestão anterior, sob Joe Biden, foi na nova fase do governo Trump que as deportações em massa ganharam um novo impulso.n A grande maioria desses imigrantes é proveniente de países da América Central, como El Salvador, Guatemala e Honduras. Há um outro grupo, porém. Muitos dos deportados recentes têm anos de residência no país e laços familiares profundos. São trabalhadores de setores essenciais da economia americana, mas que vivem sob constante ameaça de expulsão. Como observam Douglas Massey e Karen Pren no artigo “Unintended Consequences of US Immigration Policy: Explaining the Post-1965 Surge from Latin America” (2012), esse tipo de repressão revela uma contradição do sistema estadunidense, que depende do trabalho imigrante, mas criminaliza sua presença.  

Marcada por discursos xenofóbicos, a retórica anti-imigração de Trump fortalece um ambiente hostil. A promessa de uma vida digna nos EUA, que antes movia multidões, hoje é acompanhada de medo, incerteza e humilhação para muitos latinos. 

Latinos na mira: as deportações nos 100 dias do governo Trump 2.0 

Saiba mais sobre as políticas de Trump 2.0 para a imigração em situação clandestina neste Informe OPEU de Victor Cabral

A ascensão da China e a nova ordem multipolar 

Além das questões migratórias, os Estados Unidos enfrentam uma perda progressiva de influência geopolítica e econômica na América Latina. Nas últimas décadas, a China emergiu como alternativa estratégica para muitos países da região. Com investimentos de US$ 10 bilhões para acordos comerciais e projetos de infraestrutura somente durante o fórum China-CELAC, realizado em maio de 2025, o país asiático conquista cada vez mais espaço, onde antes predominava a presença estadunidense. 

Estudos, como o artigo “A Global Conversation: Rethinking IPE in Post-Hegemonic Scenarios”, publicado em 2015 por Diana Tussie e Pia Riggirozzi, demonstram que a política externa chinesa é percebida como menos intervencionista e mais cooperativa, o que a torna atraente para líderes e economias latino-americanas. Nesse cenário, os EUA deixam de ser o único centro de poder e passam a disputar espaço em uma ordem mundial cada vez mais multipolar. 

A descentralização da cultura na era digital 

Modernity At Large: Cultural Dimensions of Globalization (Public Worlds,  Vol. 1): Appadurai, Arjun: 9780816627936: Amazon.com: BooksAo mesmo tempo, a globalização e a revolução digital mudaram profundamente os fluxos culturais. O domínio cultural norte-americano, antes inquestionável, passou a ser compartilhado com outras potências e expressões locais. Plataformas como TikTok, Spotify e Netflix ampliaram a visibilidade de conteúdos latinos, coreanos, africanos e europeus.  

Conforme propõe o antropólogo Arjun Appadurai, no livro Modernity at Large: Cultural Dimensions of Globalization (University of Minnesota Press, 1996), os “fluxos culturais globais” descentralizados permitiram que comunidades periféricas participassem ativamente da construção simbólica global. Isso enfraquece o monopólio cultural que os EUA mantinham sobre o imaginário internacional, especialmente entre os jovens latino-americanos. 

Quando o sonho se transforma em desencanto 

Diante desse novo cenário, o sonho americano já não é mais unanimidade — especialmente entre as novas gerações latino-americanas que somam cerca de 37,8% da influência global, de acordo com a FLUVIP, e que cresceram em meio à globalização digital. Têm, portanto, acesso instantâneo a múltiplas visões de mundo. Embora os Estados Unidos ainda sejam vistos por muitos como um destino promissor, a imagem construída no século passado vem sendo progressivamente desconstruída pela realidade enfrentada por migrantes latinos que, em 2010, representavam 29% dos imigrantes e que, em 2022, caíram para 23%, de acordo com o Pew Research Center. 

Hoje, o acesso à chamada terra das oportunidades” é condicionado por inúmeros obstáculos estruturais. Imigrantes enfrentam um sistema jurídico hostil, discriminação racial, linguística e econômica, além de uma precarização generalizada no mercado de trabalho. Como mostram Alejandro Portes e Rubén Rumbaut no livro Immigrant America: A Portrait (University of California Press, 2024), muitos latinos ocupam postos informais, com longas e exaustivas jornadas e baixa remuneração, frequentemente sem acesso a direitos básicos, como saúde e Previdência. O contraste entre a promessa publicitária do American Way of Life e a realidade enfrentada cotidianamente por essas comunidades gera frustração, sensação de injustiça e, por vezes, arrependimento. 

Além disso, há um impacto psicológico profundo: famílias são separadas por deportações, crianças crescem com medo de perder os pais, e jovens vivem em constante insegurança quanto ao futuro. A criminalização da migração, amplificada por discursos populistas, como os adotados por Donald Trump, transforma a esperança de uma vida melhor em um campo minado de riscos e exclusão social. 

O desencanto também se expressa culturalmente. Muitos jovens latinos crescidos nos Estados Unidos relatam, no documentário “Realidade Não Documentada” lançado em 2019 pela Netflix, que se sentem estrangeiros em dois mundos: estigmatizados nos EUA por suas origens e, ao mesmo tempo, desconectados de suas raízes, ao tentarem se reinserir em sua terra natal, após a deportação. Esse limbo identitário expõe as fissuras de um sistema que promete inclusão, mas oferece marginalização. 

Assista ao trailer oficial (Fonte: canal Trailers em Português, no YouTube)

O fim de um modelo? 

Ao observarmos o declínio da influência dos EUA, tanto nas decisões políticas quanto na maneira como o país é visto como exemplo ou inspiração, percebemos uma mudança profunda de referência. O modelo americano”, que guiou tantas decisões, políticas públicas e até comportamentos individuais em países da América Latina, já não tem a mesma força mobilizadora. Hoje, diante de um mundo mais multipolar e interconectado, outras referências surgem e muitas delas oferecem alternativas mais inclusivas ou adaptadas às realidades locais. 

A ascensão da China, a regionalização de acordos econômicos e o fortalecimento de blocos como BRICS e Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (CELAC) demonstram que a hegemonia estadunidense vem sendo diluída. Como afirmam Diana Tussie e Pia Riggirozzi, os países latino-americanos estão buscando uma inserção internacional mais autônoma, com menos dependência de Washington. 

No plano cultural, a descentralização promovida pela globalização midiática também tem implicações profundas. O sucesso de artistas latinos, coreanos e africanos em premiações internacionais, o consumo de novelas mexicanas, k-dramas e produções locais via streaming, tudo isso contribui para a quebra da imagem de que apenas Hollywood define o que é “universal”. Como reforça Appadurai, vivemos em um mundo, onde os significados são produzidos em redes, e não impostos de cima para baixo. 

Diante disso, o American Way of Life parece cada vez mais um mito datado, sustentado por memórias, propagandas e uma nostalgia coletiva. Ele já não oferece garantias, tampouco representa o único caminho possível de progresso. O mundo latino-americano começa, enfim, a se desvencilhar dessa imagem construída — abrindo espaço para imaginar futuros mais plurais, justos e ancorados em suas próprias referências e sonhos.

 

* Sophie Micaella Montaño de Oliveira é graduanda em Relações Internacionais pela Fundação Armando Alvares Penteado (FAAP), com interesse em temas ligados à geopolítica, migração e cultura global. Contato: sophie.oliveira@faap.net. 

** Primeira revisão: Andressa Mendes. Revisão e edição finais: Tatiana TeixeiraRecebido em 24 abr. 2025. Este Informe não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU. 

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