EUA sob Trump: de baluarte da democracia a terra do novo autoritarismo democrático

(Arquivo) “À venda”: ativistas anticorrupção da Democracy Spring se reúnem com aliados locais perto da escadaria do Capitólio dos EUA, em Washington, D.C., em 13 abr. 2016, para mais um dia de protestos (Crédito: Stephen Melkisethian/Flickr)
Dossiê “100 Dias de Trump 2.0”
Por Fellipe Souza Sena* [Informe OPEU] [100 dias] [Trump 2.0] [Democracia]
Terra desolada: assim poderia ser traduzido o cenário estadunidense, segundo o discurso proclamado por Donald Trump no prédio do Capitólio, em Washington, D.C., ao tomar posse do segundo mandato, em 20 de janeiro de 2025. As causas? Incontáveis anos de predatismo de um establishment político corrupto e distante da realidade popular; um sistema iníquo de Justiça que favorece criminosos invasores, provenientes de instituições psiquiátricas de todo o mundo, em detrimento dos seus próprios cidadãos; um sistema educacional que corrompe a identidade da juventude e instiga o ódio à pátria, entre tantas outras mazelas.
Como resultado, o novo presidente empossado via-se diante de uma nação rapinada, cujas repetidas traições sofridas pelos mandatários antecessores culminaram em uma soberania usurpada, segurança debilitada e no sequestro da liberdade. Mas aquele, que Trump apelidara “Dia da Libertação”, seria o marco fundante do processo de reconquista do excepcional povo americano à sua posição de direito na ordem internacional, como orgulhosos norteadores de um bastião civilizacional a ser respeitado e seguido por todos os demais.
Presidente Donald Trump, em seu discurso de posse, em 20 jan. 2025 (Crédito: Casa Branca)
Reconfiguração identitária
A radiografia proclamada por Trump, que mistura de forma simbiótica decadência e renascimento magnificente, revela camadas de seu projeto político para além da reinserção estadunidense na desigual geometria econômica internacional. De imediato, a extensiva imposição de tarifas comerciais a dezenas de países, com especial intensidade contra a China, chegando a 145%, somada ao abandono de organizações e programas internacionais, demonstra como a ordem liberal internacional, cujas regras e arranjos institucionais foram profundamente modulados segundo interesses estadunidenses a partir do pós Segunda Guerra, não mais os atende, ante um processo de desindustrialização que perdura há anos e da progressiva extenuação de sua posição global hegemônica em meio ao fortalecimento de novos polos geopolíticos.
De forma igualmente relevante, existe a proposição de um realinhamento cultural do povo estadunidense, que tem como intuito a criação de uma identidade coletiva que atue de forma fractal ao presidente, ou seja, que reproduza fielmente, no microcosmo das relações cotidianas, suas condutas e arquétipos ideológico-identitários, como lastro legitimador às suas ações. Seguindo a tendência geral de governos autoritários, Trump busca formatar uma coletividade homogênea, recorrendo a subterfúgios baseados no excepcionalismo estadunidense, no ufanismo, na fé e em valores tradicionais relacionados à família e às normas de sociabilidade como forma de ancoragem da força que pretende resgatar.
Diante disso, todo e qualquer desvio do modelo tradicional passa a ser responsabilizado como agente maculoso, associado à decadência da nação. Neste sentido, as primeiras ordens executivas assinadas pelo presidente, logo nos dois primeiros dias de mandato, deixaram explícita sua cruzada contra imigrantes (do Sul Global, obviamente), contra os movimentos sociais e contra toda e qualquer forma de alteridade. Aos primeiros, fora declarada emergência nacional, com a mobilização de mais de 9 mil soldados para a fronteira com o México, e o que o novo governo prometeu que seria “a maior operação de deportação da história do país”, utilizando-se da Lei de Inimigos Estrangeiros, de 1798, para burlar o devido processo legal e acelerar o exílio dos chamados “cidadãos de países inimigos”.
Com relação aos segundos, as medidas empregadas são ainda mais extensivas. Além de declarar o reconhecimento somente dos gêneros biológicos masculino e feminino, o governo federal promoveu um verdadeiro expurgo às políticas de diversidade, equidade e inclusão (DEI). Além de cancelar todos os programas federais e afastar profissionais, a administração Trump impôs a exclusão de dezenas de milhares de fotos e documentos rotulados como referentes à diversidade, incluindo menções ao Enola Gay, avião que transportou a bomba de Hiroshima, sob pretexto de combate contra a discriminação promovida por políticas “perigosas, humilhantes e imorais”.
Somando-se ao coro, grandes marcas, como McDonald’s, Amazon, Google e Meta, anunciaram o abandono de suas políticas internas, com especial destaque para esta última. Ao encerrar seu programa de checagem de fatos e redefinir suas políticas de conteúdo, sob a bandeira da “liberdade de expressão”, passou a relativizar e, tacitamente, a autorizar discursos persecutórios e inflamados de ódio, tornando, por exemplo, a associação da comunidade LGBT a doentes mentais, uma afirmação tolerável. Com isso, as redes sociais, território de excelência da mobilização trumpista, tornam-se campo ainda mais profícuo para campanhas de eugenia social.
Novas construções autoritárias do mundo
Estas, no entanto, não são medidas, cuja originalidade possa ser creditada a Trump, mas cartas usuais que compõem o baralho político-identitário dos movimentos de extrema direita como um todo. Ao longo dos últimos anos, estes têm preenchido o mainstream do cenário político, fortalecendo-se globalmente diante da inabilidade das siglas tradicionais para lidar com os desafios da atualidade, em especial aqueles de cunho econômico.
De maneira quase invariável, estes movimentos buscam estabelecer uma percepção da realidade social baseada em uma disputa de blocos monolíticos, que personificam o bem e o mal, na qual se apresentam sob um véu de racionalidade benevolente, no combate aos martírios da “ideologia” que depredam a nação, a economia e os valores. Para tanto, recorrem à promoção de pânicos morais, elegendo inimigos públicos contra os quais é necessário reagir com vigor e tempestividade. Ao longo deste processo genealógico, novas formas radicalizadas de sociabilidade são despertadas, a partir de três estratégias centrais: o nacionalismo nativista, a abordagem populista das massas e a construção retro utópica da sociedade.
Preponderante nesses novos radicalismos, o nativismo trata de uma combinação entre ufanismo e xenofobia. Trata-se de uma percepção de cerceamento, segundo a qual a nação corre o risco de deixar de existir, devido à invasão de agentes externos e à corrosão das suas relações culturais, históricas e simbólicas locais. Diante disto, serve como força motriz à ideia de necessidade de resgate da sua pureza, de um território que seja habitado exclusivamente pelos seus nativos. Conforme Cas Mudde nos lembra, trata-se do antigo slogan “Alemanha para os alemães, estrangeiros fora”, pois o objetivo final é a construção de uma etnocracia – em outros termos, um regime no qual a cidadania é condicionada pela etnia.
Instigar este processo ao ponto de alcançar ampla capilaridade e adesão popular, no entanto, necessita de um eficiente processo de coadunação das insatisfações coletivas e do convencimento acerca dos melhores caminhos para atender as necessidades latentes. Por isso, uma indumentária populista é comumente empregada. Como traços marcantes, há o esforço de promoção de uma liderança carismática, que se propõe como outsider política, alheia às corrupções do jogo de poder e genuinamente capaz de compreender e representar os anseios populares. À medida que alcança maior rede de apoio, no entanto, passa a se valer dela para tolher o funcionamento institucional, tomando para si um sobrepoder que é empregado na infração de direitos, desembocando em processos de fratura democrática.
Neste ínterim, conforme Adorno analisara, a propaganda personifica a substância política dos movimentos radicais, e Trump, se não inaugurou, popularizou uma nova e mais efetiva forma de abordagem e conexão com as massas. Desde o escândalo da Cambridge Analytica, cujos dados foram empregados na profusão de dark-ads em sua campanha, em 2016, e ao longo de todo o seu primeiro mandato, fez das redes sociais, especialmente o Twitter, uma hábil ferramenta de manipulação.
Livre dos entraves do processo de checagem de fatos e incólume à chancela dos veículos tradicionais de comunicação, que atacou e taxou exaustivamente como manipuladores, persecutórios e ideológicos, Trump foi capaz, por meio de seus posts, de estabelecer um vínculo direto com seu público cativo. Aproveitando-se da lógica de retroalimentação dos algoritmos descrita por Eli Pariser, foi bem-sucedido em disseminar, no decorrer de seus primeiros quatro anos de governo, mais de 30 mil informações distorcidas e falsas, segundo o verificador de fatos do jornal The Washington Post, projetando ideias simuladas de ameaças iminentes, como a “cultura woke” e a “ideologia de gênero”, o comunismo, o “Deep State” e a fraude nas eleições. A partir disso, germinou gradativamente um imaginário em volume e disposição suficientes tanto para garantir seu retorno à Casa Branca quanto para dar base às políticas radicalizadas que hoje tomam o palco estadunidense.
Todo este processo, no entanto, tem como base uma construção simbólica da nação-potência, um devir que espelha aquilo que se almeja construir, a partir do reordenamento cultural. Uma vez que o diagnóstico do presente apresenta nuances de catástrofe, volta-se ao passado como arquétipo a ser reproduzido. Sua referência, todavia, não é fidedigna, mas uma construção mítica. Isto significa que esses movimentos projetam uma percepção idílica de passado, distante das ameaças presentes, uma representação arcadiana de uma realidade há muito perdida, na qual os valores permaneciam virtuosos, as instituições operavam plenamente, e lograva-se prosperidade coletiva.
Sob o axioma Make America Great Again, portanto, ao anunciar o retorno de uma Golden Age há muito perdida, Trump capitaneia os anseios e as frustrações da população. E assim o faz por meio de uma construção narrativa retroutópica, que se baseia em uma ideia fictícia de passado, segundo valores e padrões de sociabilidade especificamente autoritários. O projeto de usurpação democrática do presente se traveste, então, de ação política benevolente comprometida com o retorno do progresso.
Analisado este imbróglio, tornam-se estratégicas as iniciativas que caminham de encontro à interdição do debate público e estímulo à análise crítica. Nos últimos meses, Trump tem empregado uma instrumentalização coercitiva do financiamento público como forma de intervenção nas principais universidades do país. Determinado a suprimir programas de admissão e pesquisa relacionados às políticas de DEI (Diversidade, Equidade e Inclusão), assim como as manifestações que têm ocorrido desde 2024 em condenação à atuação de Israel no território palestino, o presidente tem ameaçado contingenciar cerca de US$ 120 bilhões em subsídios públicos. Como exigências, a administração federal demanda supervisão política das atividades universitárias, redução da autonomia de professores e pesquisadores, assim como extinguir todas as políticas de diversidade, que “envenenam as salas de aula com ideologia antiamericana, promovem uma doutrinação radical e o antissemitismo”.
Paradoxalmente, todo este conjunto de iniciativas que buscam coibir a livre-manifestação, interditar o pensamento e embargar a oposição, ocorre sob o baluarte da liberdade de expressão e da defesa da democracia. Trata-se não de uma liberdade plena, mas do pensamento regulado. Lançando mão destes artifícios simbólico-culturais, Trump busca se promover como o Grande Irmão orwelliano, fazendo do combate aos inimigos públicos a propulsão do seu projeto político. Um obelisco, sob cuja guarda impera uma liberdade de expressão que carece da emancipação que alega, pois se destina somente ao corpo ideocrático que compõe sua base de apoio – aqueles segmentos sociais que, ao longo da história, viram suas posições monopolísticas de concentração de poder e privilégios contestadas.
Diferentemente dos radicalismos do passado, é mais proveitoso que uma ruptura declarada manter as instituições operantes, debilitando, contudo, suas capacidades de regulação e de salvaguarda do governo. Desta forma, governa-se segundo um autoritarismo democrático, no qual direitos não são universais, mas condicionados, e a liberdade é uma via de mão única oposta aos párias do governo. À democracia, resta resistir, antes que uma análise como esta seja censurada como pensamento-crime.
* Fellipe Souza Sena é mestrando em relações internacionais pelo PPGRI San Tiago Dantas (Unesp, Unicamp, PUC-SP) e pesquisador do Grupo de Estudos de Defesa e Segurança Internacional (GEDES). Dedica seus estudos às questões de segurança internacional, com foco na compreensão das novas mobilizações de extrema direita e sua relação com as pautas de gênero e sexualidade. ORCID 0009-0004-1245-3047. Contato: f.sena@unesp.br.
** Revisão e edição: Tatiana Teixeira. Recebido em 25 abr. 2025. Este Informe não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU.
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