Efeitos subcutâneos da retaliação chinesa em produtos agroalimentares dos EUA

por Thiago Lima*

O conflito comercial entre Estados Unidos e China prometido por Trump em sua campanha eleitoral começa a produzir seus primeiros hematomas. Washington golpeou duas vezes: elevou barreiras contra importações de aço e alumínio da China em 8 de março e adicionou mais US$ 50 bilhões em tarifas sobre diversos produtos chineses em resposta a violações de propriedade intelectual. Pequim revidou, em 2 de abril, com tarifas que vão de 15% a 25% para diversos produtos agroalimentares, com destaque para a soja. Em 5 de abril Trump lançou um jeb ameaçando impor tarifas adicionais de USD 100 bilhões em produtos chineses e em 10 de abril Xi sinalizou recuar ao declarar a intenção de diminuir tarifas para importação de carros, arrochar a proteção à propriedade intelectual e diminuir as restrições para serviços financeiros estrangeiros.

Muitas análises têm se concentrado na análise estatística dos impactos comerciais diretos para os EUA. Aqui, faço uma interpretação mais conceitual sobre os possíveis danos do troca-tapas proposto por Trump, focando no contragolpe chinês nas commodities agrícolas dos EUA.

Equivoca-se quem pensa que a China optou por retaliar produtos de baixo valor agregado.  As commodities agrícolas exportadas pelos Estados Unidos são, na verdade, o resíduo das operações que compõem os complexos agroindustriais. Corporações gigantes como Monsanto (biotecnologia), Dow (químicos), John Deere (máquinas agrícolas) e Cargill (trader e indústria alimentícia), entre outras, tem como seus melhores clientes os produtores agrícolas estadunidenses. Para comprar os insumos tecnologicamente avançados dessas empresas e produzir com seu padrão, os produtores precisam contrair empréstimos e não é incomum que os custos de produção superem o valor de venda das commodities. A solvência dos produtores é garantida pelos famigerados subsídios agrícolas da Farm Bill. Mas, um olhar mais profundo vai notar que, na verdade, o que os subsídios garantem é a capacidade de os produtores continuarem tomando empréstimos para comprar insumos sofisticados e produzir de acordo com os padrões das indústrias alimentícia e de rações. Além disso, como parte significativa das terras lavradas são arrendadas, os subsídios garantem também que os proprietários de terras receberão seu aluguel. Eles não geram riqueza para os fazendeiros.

A questão é que essa engrenagem só pode funcionar se o resíduo sumir do território nacional. Como pegaria muito mal queimar a soja em praça pública, ele precisa ser enviado ao exterior. Do contrário, ele se amontoará nos estoques privados e estatais, pressionando a baixa nos preços, aumentando custos logísticos e – mais grave – retirando a razão para o produtor investir e para o Congresso pagar os subsídios. Nesse cenário, as corporações perderiam os melhores clientes do mundo e os proprietários de terras os melhores inquilinos: os produtores agrícolas cujo fiador é o Departamento de Tesouro dos Estados Unidos.

A voracidade da China por commodities agrícolas e alimentos é, significativamente, a salvação da lavoura americana: cerca de 60% das exportações de soja dos EUA vão pra China. O buraco negro do oriente traga para dentro de si parte considerável dos resíduos que o incrível potencial produtivo dos EUA libera – graças aos subsídios agrícolas. Nessa relação simbiótica e paradoxal, os maiores rivais comerciais do planeta unem a fome com a necessidade de exportar.

Porém, sinal dos tempos: nessa relação de interdependência específica, a assimetria parece maior do lado dos EUA. A China possui estoques estratégicos agroalimentares e pode rapidamente encontrar fornecedores alternativos mundo afora que não hesitarão em derrubar florestas para expandir a fronteira agrícola (não é, Brasil?). Os EUA, por sua vez, dificilmente encontrarão no mundo clientes que, somados, tenham um estômago do tamanho de um dragão em fase de crescimento. O mercado e os consumidores chineses podem ser sensíveis à interrupção do fornecimento americano, mas os americanos são potencialmente vulneráveis à perda de clientes chineses e, como ensinaram Keohane e Nye em Poder e Interdependência, o vulnerável tende a sofrer mais do que o sensível.

Aqui convém lembrar que Estado, corporações e produtores agrícolas são entes diferentes e sujeitos à constrangimentos estruturais peculiares. As corporações, com sua estratégia global, podem encontrar novos produtores alhures dispostos a comprar seus insumos para produzir e exportar para a China. Não são clientes tão bons quanto os americanos, pois não possuem o Departamento de Tesouro como fiador, não têm o dólar como moeda oficial, nem a estabilidade política e social da superpotência. Mas, market-share é market-share e, como dizem, na guerra urubu é frango. Já os produtores agrícolas, enraizados no território, precisam operar dali para fora. Não há alternativa. O Estado precisa fazer o meio de campo, sabendo que as corporações possuem alternativas no exterior e que se os produtores agrícolas perderem suas vendas, a conta de subsídios se eleva e – pior – pode haver calote dos fazendeiros junto aos bancos: o pesadelo do sistema. Além disso, como parte relevante do preço da terra tem a ver com o valor daquilo que se consegue produzir nela para vender, a diminuição das exportações poderá diminuir o valor da terra e isso afeta não só a capacidade dos produtores de se endividarem, mas também a própria solidez dos bancos, que têm nas terras agrícolas garantias para seus empréstimos agrícolas. As crises agrícolas dos anos 1910, 1930 e 1980 nos EUA foram crises de excesso de oferta e demonstraram o quão dependente a economia rural é dos ciclos de investimento e da solvência das fazendas. Isso compõe o que Willard Cochrane chamou, em livro de 2003, de “A maldição da abundância agrícola americana”.

Para posicionar melhor a questão do ângulo dos EUA, vejamos dois casos de outros países. Nos anos 1970, os EUA embargaram suas próprias exportações de soja para evitar o desabastecimento nacional. Um resultado não previsto foi o impulso japonês para a produção da soja no Brasil. O Japão, que dependia da importação de soja estadunidense, forneceu cooperação técnica e mercado consumidor para que o Brasil pudesse se tornar o maior concorrente dos EUA. E aqui estamos.

Nos últimos anos a Rússia tem imposto barreiras à importação de alimentos da União Europeia e dos EUA como retaliação às sanções que sofre do Ocidente. Moscou utiliza estrategicamente essas oportunidades para promover uma política de Agroindustrialização por Substituição de Importações e já mira a fase seguinte, a Agroindustrialização por Expansão de Exportações. Uma vez que o campo se converte em agroindústria de larga escala, não há saída além de exportar, como demonstram os casos dos EUA e do Brasil. Projeções indicam que a Rússia se tornará uma grande exportadora agroalimentar em breve e a proximidade com a China deve ser uma preocupação dos concorrentes, principalmente daqueles que precisam lidar com fretes trans-oceânicos.

O que os casos de Brasil e Rússia demonstram – sem grande novidade – é que quando as vendas de grandes fornecedores são interrompidas, não é incomum que surjam concorrentes dispostos preencher a lacuna. A questão, no caso agroalimentar, é que quando as vendas represadas são retomadas, amplia-se a pressão de queda nos preços e isso, no caso dos EUA, pode significar algumas coisas.

Primeiro, se os preços caírem mais, a renda dos produtores agrícolas diminui e isso pode incentivá-los a trocar soja por outras coisas commodities. Isso seria problemático para as indústrias fornecedoras de insumos (maquinário, químicos, sementes etc), que teriam seus planos de negócios afetados. Vejamos a lista de corporações gigantes que já manifestaram sua apreensão com a luta comercial: DowDuPont Inc, Archer Daniels Midland Co, Bunge Ltd, Exxon, Chevron, Monsanto. A dureza do golpe poderá ser medida pelo preço das ações dessas empresas. As ações da John Deere, por exemplo, caíram USD 10.

Segundo, a queda nos preços elevará a pressão por subsídios agrícolas. Sim, para salvar os produtores, mas também para aliviar os efeitos sobre os fornecedores de insumos. De fato, Trump sinalizou que está disposto a tomar medidas para proteger os produtores dos contragolpes chineses e absorver o impacto. A mensagem, tacitamente, se estende às corporações, proprietários de terras e bancos. O que poderia absorver o impacto? Provavelmente, mais subsídios agrícolas.

Terceiro, prevendo o fechamento do mercado chinês, os produtores agrícolas americanos podem migrar para outros produtos. O problema – inclusive para o resto do mundo agroexportador – é que isso poderá desviar comércio e baixar o preço de outras commodities, pelo menos durante uma fase de ajuste.

Enfim, para entender a retaliação chinesa aos produtos agroalimentares dos EUA, não basta apenas olhar para os hematomas aparentes. É preciso estar atento às prováveis hemorragias internas e à capacidade de Washington sustentar o combate.

 

* Autor de O protecionismo agrícola nos Estados Unidos (2018), pesquisador do INCT-INEU e professor do Departamento de Relações Internacionais da UFPB.

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