O périplo de Tillerson e a tática policial

por João Fernando Finazzi

Pelas suas próprias limitações e exigências, a política externa é um dos campos menos voláteis às mudanças das sociedades e dos governos. Ela diz respeito, parafraseando o sociólogo e historiador Charles Tilly, a grandes estruturas, longos processos e, quando possível, enormes comparações.

Não surpreende, portanto, que com uma única palavra do seu discurso na Universidade do Texas, em 1º de fevereiro, o secretário de Estado norte-americano Rex Tillerson consiga resumir a natureza das relações que os EUA mantêm com os povos que ocupam o hemisfério ocidental ao sul do pretenso muro: “A América Latina não precisa de novos poderes imperiais”.

A fala em Austin, que abriu e deu a tônica do périplo de Tillerson pela região (México, Argentina, Peru, Colômbia e Jamaica), foi permeada de referências diretas e indiretas não somente à Doutrina Monroe, agora atualizada frente o crescimento das corporações e do capital chineses na América Latina, mas também à Aliança para o Progresso.

Mas por que, dentre tantos exemplos de acordos, doutrinas e estratégias que vigoraram ao longo dos últimos dois séculos entre os EUA e a América Latina, fazer menção especificamente a estes? E por que neste momento?

De um lado, uma doutrina que busca garantir desde 1823 as Américas como área de influência dos EUA e conter as potências européias; de outro, um programa de ajuda econômica que vigorou na década de 1960 durante os governos Kennedy e Johnson com o objetivo de conter a influência da Revolução Cubana e dos crescentes grupos de esquerda no continente.

Certamente não se pode perder de vista a crise venezuelana e a ascensão da China, fatos que tomam a atenção dos principais jornais do mundo. Contudo, qual o conteúdo das percepções de ameaças que tomaram o espaço deixado pelo colapso da União Soviética? Em todos os lugares por onde passou a comitiva norte-americana, o tema da cooperação policial e jurídica internacional no combate ao tráfico de drogas e à corrupção teve marcada importância.

Estes esforços, num primeiro momento, soariam de certa forma contraditórios, ao serem colocados frente o fato de que os próprios EUA estão atualmente em processo de revisão da sua política de drogas, com o crescimento da legalização da maconha em diversos Estados, inclusive na própria capital federal, Washington D.C. Ou também ao se constatar a significativa exclusão do Brasil, principal rota e ponto de consumo de drogas do mundo, do translado dos norte-americanos.

O quadro só se torna razoavelmente coerente ao se observar que esta forma de atuação compõe, mesmo que alguns atores realmente compartilhem o objetivo de acabar com o tráfico e o consumo de drogas no mundo, um longo processo que data da fundação dos EUA e que tem se aprofundado desde meados do século XX com a “declaração” de “guerra às drogas”: a contínua expansão das leis penais, das polícias, das instituições de justiça e dos modos processuais norte-americanos para a América Latina e o mundo.

Segundo o pesquisador Ethan Nadelmann, ao longo da história os EUA conseguiram com exemplos, pedidos, pressões ou simplesmente por meio de ações encobertas alterar profundamente as bases dos sistemas de justiça de países estrangeiros. “Nenhum outro governo”, diz Nadelmann, “perseguiu a agenda de internacionalização da aplicação da lei de modo tão agressivo e perspicaz”.

As suas consequências são muito bem conhecidas na América Latina. A pesquisadora Martha Huggins, em estudo sobre o policiamento internacional promovido pelos EUA na região, demonstra que o seu objetivo primordial, para além das retóricas humanistas, era monitorar eventuais riscos de politicas que sejam hostis aos interesses do governo norte-americano. À época, uma das mais importantes iniciativas da Aliança para o Progresso dizia respeito ao treinamento e equipamento das forças de segurança e do sistema judiciário por meio de uma articulação entre diverças agências como a USAID, o Escritório de Segurança Pública e a CIA. O programa não somente não fez garantir o Estado democrático de direito como também permitiu aprofundar as detenções abritrárias, torturas e a ação de grupos de extermínio, agora com melhores organizações, armas e técnicas.

Em termos gerais, o historiador Jeremy Kuzmarov comenta que a “modernização da repressão” promovida pela internacionalização, sem precedentes na história, do policiamento dos EUA, serviu tanto para estabelecer a segurança interna tida como necessária para o desenvolvimento do capitalismo no globo quanto para aperfeiçoar os mecanismos de controle e vigilância social, com resultados brutais não somente para a América Latina.

Estes indícios levam a crer que, mais do que manobras retóricas vazias, as referências à Doutrina Monroe e à Aliança para o Progresso feitas por Tillerson em Austin vêm a colocar o reforço aos acordos internacionais de cooperação na área policial e jurídica como exemplos da manutenção de uma longa tradição norte-americana.

Portanto, não é de se surpreender que, quando questionado no Texas sobre o que os EUA fariam para combater a corrupção na América Latina, Tillerson respondeu que além fortalecer o sistema judiciário e os agentes do “law enforcement”, a ideia seria “passar novas leis de acusação que tornem mais fácil processar os casos de corrupção”.

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