Estados Unidos viram alvo real da Coreia do Norte

Em pleno 4 de Julho, quando se comemora a independência dos Estados Unidos, a Coreia do Norte anunciou o lançamento de seu primeiro míssil balístico intercontinental (ICBM). Autoridades dos Estados Unidos confirmaram que o artefato levou 37 minutos para percorrer cerca de 930 Km de distância, alcançando 2.500 km no ponto mais alto da trajetória e caindo a 350 Km da costa japonesa.

Foi um presente para os “bastardos americanos”, falou o presidente norte-coreano, Kim Jong-un. A retórica é importante na propaganda de seu regime, tratado no cenário internacional com um misto de escárnio e curiosidade. Dessa vez, a percepção prevalecente é a de temor. O feito coloca a América do Norte na mira dos mísseis teleguiados e eleva a tensão na Ásia, ao mesmo tempo em que dificulta a solução do problema.

Sem cartas na manga

Segundo o físico e diretor do Union of Concerned Scientists, David Wright, a altura indica que o projétil poderia atingir o Alasca, a quase 6.000Km do ponto de partida. O Pentágono e o Departamento de Estado também reconheceram se tratar de um ICBM, frustrando a previsão recente do presidente Donald Trump de que nunca haveria um míssil intercontinental da Coreia do Norte.

O governo norte-coreano afirma que o projétil pode ser carregado com ogiva nuclear, mas não existem provas de que o país já tenha alcançado esse nível tecnológico. Mesmo sem munição atômica, o lançamento do míssil torna os Estados Unidos fisicamente vulneráveis.

Existe outro agravante. O escudo de defesa nos Estados Unidos, com 32 interceptadores no Alasca e quatro na Califórnia, falhou em três dos cinco testes feitos até hoje.

Formas de responder militarmente não faltam para os Estados Unidos, seja por um ataque cirúrgico (aéreo e de bases offshore) para destruição do arsenal norte-coreano, até a intervenção com mais de 80 mil soldados estacionados na Ásia e forças aliadas de dentro e fora da região. O problema são as consequências, entre as quais, o contra-ataque à Coreia do Sul e ao Japão, bem como a incerta reação de potências regionais não aliadas.

China e Rússia condenam o lançamento do míssil, mas rejeitam uma ação militar liderada pelos Estados Unidos. Após um encontro no Kremlin entre os presidentes Xi Jinping e Vladimir Putin, também no dia 4, seus ministérios das Relações Exteriores comunicaram que os dois países manterão posição unificada em relação à questão. Em outras palavras, a Coreia do Norte não é o único desafio que Washington tem que enfrentar no Norte Asiático.

Sempre é importante lembrar que, não longe de lá, ainda se trava a longa e quase esquecida Guerra do Afeganistão. Em 2012, o então secretário de Defesa, Leon Panetta reconheceu que duas guerras simultâneas são inviáveis na realidade orçamentária contemporânea.

Adotar a política de contenção, que significa conviver com o poderio nuclear norte-coreano e dissuadir o seu uso, perpetuaria a instabilidade regional e desacreditaria os Estados Unidos perante seus aliados e rivais.

Tentar mudar o regime norte-coreano seria uma alternativa política, ainda que demorada e de difícil previsão. Além de provocar a suspeita até mesmo entre aliados. No longo prazo, como se pode ver no Iraque, refazer a política doméstica de outro país cobra seu preço.

Resta a dependência de terceiros para uma saída política, retomando, por exemplo, o Grupo dos Seis (EUA, China, Rússia, Japão e as duas Coreias). Mas os atores verdadeiramente capazes de levar o governo norte-coreano à mesa de negociação são Coreia do Sul e China.

Trump reconhece a importância chinesa. Após a notícia sobre o míssil se tornar pública, o republicano expressou no Twitter sua esperança de que a China tome uma atitude firme e acabe com essa “maluquice de uma vez por todas”.

Teria o presidente reconhecido a impotência dos Estados Unidos?

Respondendo, mas não à altura

No dia seguinte ao lançamento, Estados Unidos e Coreia do Sul fizeram exercícios com mísseis nas águas territoriais sul-coreanas. Segundo o Comando do Pacífico dos EUA, o treinamento conjunto foi uma resposta direta às ações da Coreia do Norte.

O governo norte-americano também pediu uma reunião extraordinária do Conselho de Segurança da ONU (CS) para deliberar sobre novas sanções contra a Coreia do Norte. Como os Estados Unidos têm um comércio pequeno e restrito com o país, limitado a alimentos e medicamentos, a maneira de aumentar as sanções é convencer o mundo a boicotar Pyongyang.

Onde lê-se mundo, entenda-se China, que é o maior parceiro comercial da Coreia do Norte (90%). Nikki Haley, embaixadora dos Estados Unidos na ONU, afirmou que os países que insistirem em fazer comércio com a Coreia do Norte serão penalizados nas transações comerciais com os Estados Unidos.

Diante da importância da China para a economia norte-americana, a declaração soa como blefe. O mais provável é que os Estados Unidos apliquem penalidades pontuais e simbólicas. Dias antes do disparo do míssil, o Departamento do Tesouro já trabalhava para isso, impondo sanções contra uma empresa, um banco e dois indivíduos chineses por ligações ilícitas com a Coreia do Norte. Como era de se esperar, o governo chinês foi poupado.

Por sua vez, a proposta no CS não avançou. China e Rússia não aceitaram os termos da resolução por discordarem que o míssil em questão seja de longo alcance. Em nota, no dia 6, o governo russo explicou que aceitará a resolução se os Estados Unidos, que são os proponentes, corrigirem o texto.

Mesmo que a China aceite aumentar a pressão, suas opções diminuem a cada dia. A China já deixou de comprar carvão da Coreia do Norte no início do ano. O próximo passo seria suspender a venda de petróleo, mas o governo chinês teme desperdiçar o trunfo antes da hora.

Teria o lançamento do ICBM avançado os ponteiros?

Coreia do Sul, aliado titubeante

Eliminar o poder nuclear norte-coreano é um objetivo comum dos Estados Unidos e da Coreia do Sul. Foi o que disse Donald Trump depois de se reunir com o presidente sul-coreano, Moon Jae-in, quatro dias antes de o míssil ser lançado.

No encontro na Casa Branca, Trump acrescentou que o tempo da paciência estratégica com o programa balístico da Coreia do Norte acabou, mas que existem várias formas para se lidar com a ameaça.

A variedade de opções à qual se refere o republicano também pode ser interpretada como divergências com o aliado sobre a melhor política para a Coreia do Norte. Enquanto o governo norte-americano planeja subir o tom e impor mais sanções, Seul prefere a via diplomática. Pelo menos, esse era o cenário até 4 de julho.

Moon pretende que as duas Coreias formem uma equipe única para disputar as Olimpíadas de Inverno de 2018, na cidade sul-coreana de Pyeongchang. O presidente também quer investir mais no vizinho e fala em assinar o tratado de paz pendente desde o fim da guerra em 1953.

A apologia à reaproximação entre as duas Coreias não é novidade entre a classe política sul-coreana. Até sofrer um impeachment em dezembro de 2016, Park Geun-hye, antecessora de Moon, tentou mobilizar apoio doméstico e internacional nesse sentido.

Discretamente, os Estados Unidos apoiam a reunificação desde que o norte seja incorporado pelo sul. O plano, é claro, não conta com a anuência da China. Uma Coreia unida, com domínio nuclear, poder econômico e alinhamento ocidental é tudo o que a China menos precisa para sua segurança regional.

O movimento contrário – Coreia unida e alinhada com a China – tampouco interessa aos Estados Unidos. Fica, então, a dúvida se a reunificação tem chance diante da conformação geopolítica.

Paralelamente às tratativas diplomáticas, os Estados Unidos aumentam seu poder militar na região. Um exemplo recente é o sistema de defesa THAAD (Terminal High Altitude Area Defense). Construído e instalado pelos Estados Unidos, o escudo visa proteger a Coreia do Sul e os 28.500 soldados norte-americanos em bases sul-coreanas de ataques balísticos de curto e médio alcance.

Eleito em maio, Moon suspendeu o plano de expansão do sistema, alegando que a instalação de quatro novos lançadores precisava ser avaliada do ponto de vista ambiental. Na verdade, o presidente se irritou por não ter sido informado pela cúpula militar de que os lançadores já estavam no país.

Na campanha presidencial, e em aparente concessão à China, Moon já tinha sugerido que o programa do THAAD fosse rediscutido. A China alega que o sistema também pode interceptar e destruir seus mísseis, dando aos Estados Unidos uma vantagem estratégica na Ásia que a China não tem na América. Outras alegações são as de que o super radar do THAAD facilitaria o monitoramento de atividades militares chinesas pelos Estados Unidos.

Desde que a primeira parte do THAAD foi inaugurada, em 2016, a China vem retaliando com boicotes à importação de alguns produtos sul-coreanos e proibindo excursões de turismo para a Coreia do Sul. A pressão econômica sensibiliza pouco a ala política conservadora na Coreia do Sul, que tem fortes ligações com os militares, mas preocupa as lideranças liberais, como Moon.

O atrito por conta do THAAD vem num momento em que Estados Unidos e Coreia do Sul também têm suas rusgas comerciais. No encontro com Moon, Trump reclamou que a balança comercial tem crescido a favor da Coreia do Sul. O foco da queixa são as barreiras sul-coreanas à indústria automotiva norte-americana e a suposta intermediação sul-coreana para entrada de aço chinês nos Estados Unidos.

Teria o nacionalismo de Trump aproximado Coreia do Sul e China?

Muita tensão para pouca doutrina

Com tão pouco tempo de presidência, é cedo para se analisar o estilo de política externa de Trump, embora há quem arrisque dizer que “America First” não tem nada a ver com o isolacionismo falado na campanha presidencial. Se essa avaliação estiver certa, pode-se esperar mais assertividade no norte da Ásia.

No encontro do G-20, três dias depois do lançamento do míssil, Trump ameaçou aplicar medidas severas contra a Coreia do Norte, embora sem especificar quais. Insistindo que alguma coisa precisa ser feita, por enquanto, o republicano não parece ter a menor ideia de como sair dessa encruzilhada.

por Solange Reis

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