Política Doméstica

Comey e Sessions: dois depoimentos, duas versões

Em menos de duas semanas, Washington se manteve em estado de atenção e de tensão máximas, com os depoimentos do ex-diretor do FBI James Comey e do (ainda) procurador-geral Jeff Sessions no Senado americano. Divergentes em praticamente tudo – conteúdo, forma e estratégia –, ambos os testemunhos reforçaram algumas das poucas certezas possíveis até o momento no escândalo que envolve a presidência de Donald Trump e a Rússia de Vladimir Putin.

Poucas certezas e muita preocupação

Uma delas (a mais visível) é que a situação de Trump se torna cada vez mais delicada, com reflexos para o bom andamento de sua incipiente administração. Arrastando-se de crise em crise, os republicanos têm tido dificuldade para começar a impor uma agenda própria que decole de fato – no Executivo e no Legislativo – e que não se restrinja ao desmantelamento de políticas adotadas pelo governo anterior. A outra certeza diz respeito aos vínculos de seus funcionários mais próximos com Moscou. Embora as investigações ainda estejam em andamento, vai-se consolidando a percepção de que os russos estiveram mais envolvidos do que os americanos gostariam com a política nacional recente. Pode-se afirmar também que, enquanto a Casa Branca de Trump mantiver uma postura hostil em relação à comunidade de Inteligência, vai-se demorar a chegar a bons termos nesse caso, com mais e mais informações confidenciais, ou comprometedoras, sendo vazadas contra o governo de tempos em tempos.

Um efeito dessa escalada de acontecimentos é que as investigações iniciadas em julho de 2016 deixaram de se restringir à possível ingerência de hackers russos na campanha e, agora, também buscam determinar se Trump pode ser acusado de obstrução de Justiça nesse mesmo caso. Lembra-se que essa acusação é suficiente para a abertura de um processo de impeachment no Congresso, procedimento que tem um caráter essencial e nitidamente político nos EUA. Em mais uma costumeira reação pelo Twitter, Trump reclamou que está sendo investigado como retaliação à demissão de Comey e se diz vítima de uma “caça às bruxas”. De fato, ele passou à condição de investigado após a saída do então diretor do FBI, em 9 de maio.

A pressão de Trump

Em 8 de junho, o diretor da Polícia Federal americana demitido por Trump compareceu ao Comitê de Inteligência do Senado para apresentar sua versão sobre a investigação do FBI e sobre a pressão que o presidente teria exercido sobre ele. Em testemunho de mais de três horas, expôs como a agência funciona e trabalha, defendendo sua autonomia e independência investigativa. Não tergiversou e criticou republicanos e democratas. Segundo James Comey, Trump “é um mentiroso”. Apenas um dia depois de demitir seu então conselheiro de Segurança Nacional, general Michael Flynn, em encontro no Salão Oval da Casa Branca em 14 de fevereiro, o presidente teria defendido Flynn e solicitado a Comey – conforme seu relato no Congresso – o arquivamento da investigação do FBI sobre os contatos de seu ex-assessor com os russos. Alguns dias antes, em 27 de janeiro, Trump teria pedido “lealdade” a Comey.

O ex-diretor do FBI contou ainda que decidiu vazar para a imprensa o conteúdo de memorandos internos sobre seu encontro com Trump, após ser ameaçado pelo republicano no Twitter. Segundo ele, foi a primeira vez em toda sua carreira que passou a registrar detalhes dos encontros com a figura do presidente. Na audiência do dia 8, esse funcionário de carreira do FBI alegou que seu principal objetivo com o vazamento era conseguir a nomeação de um investigador independente para liderar o caso, que passou às mãos do também ex-diretor dessa agência Robert Mueller.

Agora, os republicanos – entre eles o presidente da Câmara dos Representantes, Paul Ryan (R-WI) – tentam desqualificar e conter os rumores de que Trump poderia recorrer ao “privilégio do Poder Executivo” para omitir informações que possam comprometê-lo, ou mesmo que poderia demitir Mueller. Na primeira situação, o precedente é negativo para o republicano. Durante o escândalo do Watergate, a Suprema Corte determinou que o recurso não poderia ser usado para esconder provas em ações penais.

Em resposta ao presidente do Comitê, senador Richard Burr (R-NC), James Comey garantiu que seria possível encontrar provas de delitos que vão além da suspeita de conluio da equipe de campanha de Trump com Moscou durante a corrida à Casa Branca de 2016. Também disse “não ter dúvidas” de que os russos estão envolvidos nos episódios de ciberpirataria ocorridos durante a eleição. Entre eles, está a invasão aos e-mails de lideranças do Comitê Nacional Democrata, um incidente que se mostrou danoso para a imagem da então candidata Hillary Clinton.

Ainda assim, Comey evitou falar em “obstrução de Justiça” no que se refere às ações de Trump. Além da pressão do atual presidente, ele revelou que já havia sido constrangido pela então procuradora-geral do governo Barack Obama, Loretta Lynch, também no período eleitoral e em outro caso igualmente polêmico. A secretária de Justiça teria-lhe pedido discrição sobre o escândalo do uso inadequado de e-mails oficiais (incluindo comunicações de caráter confidencial) por parte de Hillary quando a ex-senadora e ex-primeira-dama esteve à frente do Departamento de Estado.

O não depoimento de Sessions

Também por quase três horas, no dia 13 de junho, o procurador-geral de Justiça, Jeff Sessions, negou ter-se encontrado com autoridades do governo russo para tratar da campanha de Trump, afirmando se tratar de eventos de sua agenda ainda como senador. O secretário também rejeitou as acusações de participação em qualquer complô com Moscou – “uma mentira deplorável e detestável”, segundo ele. Alegando “não se lembrar” de boa parte dos eventos citados ao longo da audiência, recorreu a seu “dever de proteger comunicações confidenciais com o presidente”, em função do cargo ocupado, para evitar responder diretamente a maioria das questões dos membros do Comitê. A recusa em comentar suas conversas com Trump irritou a base democrata na Casa.

De acordo com a imprensa americana, o secretário teria-se reunido pelo menos duas vezes com o embaixador russo nos EUA, Sergey Kislyak, ao longo da disputa eleitoral. A denúncia teria levado a seu afastamento, em 2 de março passado, das investigações relacionadas à campanha de Trump. Sobre Comey, Sessions afirmou desconhecer as supostas pressões que o funcionário estaria sofrendo por parte da Casa Branca e não quis comentar sua influência, como procurador-geral, na decisão tomada por Trump de demitir o então diretor do FBI.

No início de junho, o presidente criticou Sessions por mudanças em sua polêmica ordem executiva sobre a proibição de ingresso de muçulmanos no país. Nesse contexto e já no meio do fogo cruzado, Sessions teria colocado o cargo à disposição, sob a justificativa de que precisava de “liberdade” para trabalhar. O presidente teria recusado. A Casa Branca não se manifestou oficialmente sobre o mal-estar entre os dois. Ex-senador pelo estado do Alabama, Sessions foi um dos primeiros republicanos a apoiar Trump em sua improvável campanha pela presidência dos EUA.

Quase 70% acreditam em intervenção de Trump

Pesquisa realizada pela Associated Press com o NORC Center for Public Affairs Research após as duas audiências no Senado e após a notícia de que Trump está sendo investigado por Mueller revela que pelo menos 68% dos americanos se preocupam com a possibilidade de que o presidente tenha tentado intervir na investigação sobre a Rússia. Quase 50% admitiram estar muito preocupados. E somente 22% apoiam sua decisão de demitir Comey.

A sondagem mostra ainda que a aprovação ao governo Trump continua em queda e aponta que a tendência de perda de apoio entre republicanos e independentes se mantém. Apenas 35% aprovam o desempenho do presidente, enquanto 64% reprovam. Além disso, 65% dos entrevistados consideram que Trump têm nenhum, ou pouco, respeito pelas instituições e tradições democráticas do país. Segundo o site RealClearPolitics, em 16 de junho, na média das últimas enquetes, a aprovação a Trump é de 39,9% contra 53,6%.

Cenários possíveis

Na capital, sobretudo entre os correligionários do presidente, o momento é de cautela e de preocupação, com três cenários possíveis, por enquanto. No primeiro, Trump decide, enfim, baixar o tom, recuar em seu estilo impulsivo e extravagante de governar e se enquadra à rotina presidencial. Para o sistema político e para os agentes que nele gravitam, ávidos por períodos de estabilidade no processo decisório, é a melhor opção. Para o magnata, há algum risco de se ver abandonado pelos eleitores que o escolheram exatamente por seu alto nível de imprevisibilidade e por sua aparente desconexão com o establishment. No segundo cenário, é o entorno do presidente que se adapta, tentando traduzir cada discurso, medida, ou tuíte (e transformá-los em políticas plausíveis e palatáveis) para aliados e para o público em geral. Aqui, a tensão é permanente, em um quadro que pode se tornar bastante entrópico, marcado pelo aumento da descentralização das decisões. Por último, o campo de possibilidades mais dramático dos três, o presidente republicano poderia ser alvo de um processo de impeachment, ou poderia renunciar.

por Tatiana Teixeira

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