Política de Trump na Ásia traz risco para Austrália

Como manter as vitais relações econômicas com a China e com outros países da Ásia e, ao mesmo tempo, apoiar a política hostil dos Estados Unidos para a região? Esse dilema da Austrália não começou com a eleição de Donald Trump, haja vista o giro estratégico de Barack Obama para a Ásia em 2011, mas aumentou com o discurso nacionalista do atual ocupante da Casa Branca.

Para citar alguns exemplos, Trump retirou seu país da Parceria Transpacífico (TPP), ameaçou sobretaxar as importações chinesas e sugeriu que Seul pague pelo sistema anti-míssil instalado pelos Estados Unidos no território sul-coreano recentemente.

A estratégia militar do líder norte-americano para a região ainda é vaga, mas poderá impedir que o governo australiano continue a equilibrar, sem solavancos, o alinhamento de defesa incondicional com os Estados Unidos e a confiança da China, principal parceiro comercial da Austrália.

Essa questão é central no debate sobre política externa na Austrália e o governo australiano ainda tateia no escuro sobre o que a eleição de Trump significa para suas relações regionais.

Começando com o pé esquerdo

O diálogo entre Estados Unidos e Austrália, quase sempre afinado nas últimas décadas, tem sido dificultado pelo histrionismo de Trump.

Em fevereiro, um telefonema entre o primeiro-ministro Malcolm Turnbull e Trump terminou meia hora mais cedo do que o previsto, com o norte-americano interrompendo a ligação abruptamente. O motivo foi a ira de Trump com o que considera um acordo “estúpido” sobre refugiados, assinado por Barack Obama no fim de 2016. Pelo acerto, os Estados Unidos se comprometem a receber metade dos 2.500 refugiados detidos pela Austrália, em condições desumanas, nas ilhas de Nauru (espécie de Estado cliente da Austrália) e Manus (parte da Papua-Nova Guiné).

Em visita à Austrália em abril, o vice-presidente Mike Pence confirmou que o compromisso seria honrado. Os papéis de bom e mau policial parecem traçados para, respectivamente, Pence e Trump, no que poderá ser uma marca nos próximos anos.

Na dúvida sobre como as relações entre os dois países evoluirão, um grupo bipartidário de senadores criou o Caucus Friends of Australia, no mês seguinte.

Trump e Turnbull voltaram a conversar, em maio, a bordo do USS Intrepid, hoje um museu militar na cidade de Nova Iorque. Após deixar o primeiro-ministro esperando por três horas, Trump disse “amar a Austrália, um dos lugares mais bonitos da Terra”. Elogio pueril, em se tratando de um aliado que participou de todas as grandes aventuras militares dos Estados Unidos nas últimas décadas.

Na primeira oportunidade, Turnbull deu o troco. No vídeo “acidentalmente” vazado durante um jantar com a imprensa australiana, em junho, o primeiro-ministro imita Trump e caçoa do vocabulário e da sintaxe do magnata.

A pequena vingança tem mais a ver com a necessidade de impressionar o público doméstico, já que o primeiro-ministro vem enfrentando impopularidade e oposição pesada no Parlamento. Por outro lado, é preciso interpretá-la à luz da fragilidade atual de Trump com a investigação sobre suposta obstrução da lei no caso que envolve o FBI e a Rússia.

Fora do nível pessoal, as relações seguem o padrão. No encontro anual conhecido como Shangri-la Dialogue, coordenado pelo think tank International Institute for Strategic Studies (IISS), Turnbull disse que uma China coercitiva levaria os vizinhos a reforçar alianças entre si e com os Estados Unidos.

Em março, a ministra das Relações Exteriores, Julie Bishop já havia alertado a China sobre falta de democracia e exortado os Estados Unidos a aumentar seu engajamento na Ásia-Pacífico. Bishop também criticou a Coreia do Norte, que ameaçou um ataque nuclear caso a Austrália continue a seguir “cegamente os Estados Unidos”.

Pyongyang exagera sobre o alcance de seu arsenal, mas acerta quanto ao arriscado alinhamento absoluto da Austrália com Washington.

Estados Unidos: aliado custoso

Quando os Estados Unidos, a Austrália e a Nova Zelândia assinaram o Tratado ANZUS, em 1951, Donald Trump estava em sua primeira infância e a Coreia do Norte não possuía armas nucleares. Nem por isso a Ásia-Pacífico era menos instável do que hoje. Ao contrário, nela se travavam os conflitos mais sangrentos da Guerra Fria.

Para os Estados Unidos, havia o risco de expansionismo chinês e, indiretamente, da União Soviética. Conter o comunismo implicava, entre outras ações, rearmar o Japão. A mera ideia, contudo, alarmava as duas principais nações da Oceania.

ANZUS resultou, portanto, da comunhão de interesses. Para os Estados Unidos, representava o fortalecimento de alianças em uma região potencialmente conflitiva. Para Austrália e Nova Zelândia, significava a proteção que o combalido Império Britânico não oferecia mais.

Sem ser um acordo de defesa garantida, como o Tratado do Atlântico Norte, o ANZUS previa consultas e possível apoio militar em caso de ameaças aos territórios dos signatários no teatro do Pacífico.

De lá para cá, o arranjo tripartite tornou-se um acordo de dois níveis, entre Nova Zelândia e Austrália, e desta com os Estados Unidos. Em 1986, Washington suspendeu seu compromisso com a Nova Zelândia, que passara a proibir a entrada de navios nucleares em seus portos. A decisão submetia os Estados Unidos ao escrutínio de um país diminuto, situação inaceitável para a grande potência.

A Austrália seguiu o alinhamento incondicional e participou de todos os grandes conflitos militares ao lado dos Estados Unidos, mesmo que os países invadidos pela coalizão não apresentassem qualquer risco a Canberra. Mais do que apoio material e humano, a Austrália abriu seu território para treinamento de forças norte-americanas e operações de inteligência.

A base militar Robertson Barracks, na cidade de Darwin, ao norte, e o secretíssimo centro de espionagem Pine Gap, no centro do país, são os principais símbolos da cooperação estratégica. Já a base de North Cape West abriga um radar e um telescópio para monitoramento e acesso a satélites estrangeiros, o que coloca a Austrália no fogo cruzado de uma eventual guerra espacial.

Em 2011, a base em Darwin passou a servir como um hub de rotatividade de soldados norte-americanos lotados na Ásia-Pacífico. Os governos australiano e norte-americano evitam relacionar as funções da base com a ascensão chinesa, mas a causalidade é fait accompli entre os analistas.

Outra prova da relação estratégica é a cooperação na exclusivíssima aliança de espionagem conhecida como Five Eyes, que também inclui Reino Unido, Canadá e Nova Zelândia.

O ex-primeiro-ministro australiano, Malcolm Fraser, já chamava atenção, em 2014, para a cumplicidade da Austrália em caso de um ataque dos Estados Unidos contra qualquer país a partir de Darwin. Segundo o liberal, o Pentágono sequer precisaria de permissão australiana para agir.

Richard Tanter, da Universidade de Melbourne, critica o vício da Austrália em se alinhar com os Estados Unidos independentemente das consequências, e alerta para a eventual reação da China em caso de conflito armado.

China: indispensável parceiro do bolso

O alinhamento estratégico com os Estados Unidos tem apoio popular, mas pesquisas indicam que a população atribui à China o mesmo nível de importância. Não teria como ser de outra forma, se considerada a importância chinesa para a economia australiana.

A Austrália bateu um recorde mundial ao atingir 103 trimestres consecutivos sem recessão, desbancando a Holanda, que sucumbiu à crise de 2008. Os dados divulgados, no dia 6, mostram a resiliência do país nos últimos 26 anos, período em que manteve crescimento anual médio de 3,2%.

Para alguns economistas, a trajetória positiva se deve às reformas neoliberais feitas a partir dos anos 1980. Outros chamam atenção para o elemento sorte, como a abundância de recursos naturais e a proximidade da Ásia. Na condição de um dos maiores exportadores mundiais de minério de ferro e carvão, a Austrália se beneficiou da ascensão asiática, particularmente do boom chinês nos anos 2000.

Poucos países foram tão afetados pela projeção da China como a Austrália, que só perde para os Estados Unidos em recebimento de investimentos diretos chineses. Foram US$ 90 bilhões desde 2007, sendo US$ 11,42 bilhões somente no ano passado.

Boa parte está aplicada no setor imobiliário e a eventual fuga desse tipo de capital faria estourar o que se considera a bolha da economia australiana.

A China não exporta só capital para o país conhecido como “Land Down Under”, uma referência à posição geográfica australiana. Aproximadamente três em cada dez habitantes na Austrália nasceram no exterior e os chineses já somam 2% da população. Muitos procuram ensino técnico e superior, colocando o setor de educação entre os cinco principais segmentos econômicos da Austrália.

Quase 32% das exportações australianas têm a China como destino, embora a balança comercial favoreça a Austrália, já que as importações são de 22,3%. O detalhe é que, enquanto a Austrália vende commodities e serviços, a China abarrota o comércio australiano com produtos tecnológicos e manufaturados.

Os Estados Unidos são um parceiro comercial importante, haja vista o acordo de livre comércio, assinado em 2004, e que, agora, especula-se ser alvo de revisão pelo governo Trump. A balança comercial, no entanto, tem pesado contra a Austrália: 5,4% de suas exportações vão para os Estados Unidos, contra 11,2% de importações no fluxo contrário.

Comércio com a China ou segurança com os Estados Unidos?

Talvez o contexto nunca chegue a ser o de uma escolha de Sofia. A China é um país pragmático quando se trata de seus interesses econômicos e Trump, uma caixa de surpresas.

Contudo, no cenário extremo de conflito no Mar do Sul da China ou nas Coreias, a Austrália não escapará a um posicionamento estratégico que poderá ter como efeito colateral atritos com a China e, consequentemente, a interrupção de seu invejável crescimento econômico.

por Solange Reis

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