O novo acordo nuclear e as perspectivas para a relação entre Estados Unidos e Irã

Panorama EUA, vol. 3, no. 9, outubro de 2013

por Fernanda Magnotta e Solange Reis

Ao longo da 57a Conferência Geral da Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA), em meados de 2013, muito já se especulava sobre novas tentativas de aproximação entre o Irã e o Ocidente. Com a chegada do presidente Hassan Rouhani ao poder, em junho, medidas apaziguadoras indicaram uma importante inflexão em relação ao antecessor, Mahmoud Ahmadinejad, que permaneceu à frente do governo durante os últimos oito anos. Considerado um líder moderado, Rouhani, assim que eleito, cumprimentou o povo judeu por seu Ano Novo, anunciou a libertação de cerca de oitenta presos políticos e disse que, em 24 de setembro, durante a Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU), revelaria ao mundo “a face verdadeira” de seu país, ocasião em que lamentou o holocausto, criticou as sanções impostas ao Irã e trouxe a questão nuclear novamente para o centro do debate político.

Sem surpresa, portanto, dias após o discurso oficial proferido nas Nações Unidas, as negociações nucleares, até então congeladas, foram formalmente retomadas. Neste contexto, o secretário de Estado John Kerry foi designado como o principal representante dos Estados Unidos, enquanto o chanceler Mohammad Javad Zarif, ex-embaixador na ONU, assumiu a liderança do lado iraniano. Além disso, pela primeira vez em trinta e quatro anos, os presidentes dos dois países estabeleceram contato direto por meio de ligação telefônica, fato que deu lugar a uma série de análises que sinalizou a possibilidade de acordo no curto prazo e de uma reaproximação histórica. Desde a Revolução Islâmica e a deposição do xá Reza Pahlavi, em 1979, e o rompimento das relações diplomáticas com o sequestro dos funcionários da embaixada dos Estados Unidos em Teerã, no ano seguinte, o relacionamento é permeado por animosidades.

O que poucas análises deram conta de explorar é que, desde março deste ano, um seleto grupo de alto escalão formado pelo presidente Barack Obama se reunira em Omã para dar início a negociações sigilosas com os iranianos. Registros apontam que, conduzidos pelo subsecretário de Estado William Burns, pelo principal assessor de política externa da vice-presidência, Jake Sullivan, e por Wendy Sherman, a principal negociadora dos Estados Unidos para o tema nuclear iraniano, ao menos cinco encontros ocorreram entre as partes.

Se por um lado, parece demasiado otimista perceber os recentes acontecimentos como uma ruptura efetiva na política externa dos Estados Unidos, também seria inapropriado desconsiderar os avanços obtidos, neste marco, ao longo da gestão Obama. Já em sua primeira campanha eleitoral, em meados de 2008, o presidente repetidamente declarou a predisposição em romper com o ciclo de hostilidade que pautara a relação entre os dois países nas últimas décadas e, uma vez no poder, chegou a saudar o povo e o governo iraniano em diversas mensagens oficiais[1], bem como procurou atenuar os discursos que anteriormente classificavam o Irã como um país pertencente ao chamado “eixo do mal”. Tal bloco foi originalmente concebido por George W. Bush em discurso ao Congresso poucos meses após os atentados terroristas de 11 de setembro de 2001. De acordo com o então presidente, a designação reunia países que, uma vez armados, representariam uma “ameaça à paz no mundo”.

Precedentes

Particularmente no caso do Irã, tal percepção derivava dos avanços obtidos em seu programa de energia atômica. O desenvolvimento do projeto nuclear teve início na década de 1950, com apoio explícito dos Estados Unidos através do programa Átomos para a Paz.  Em 1973, o xá criou a Organização de Energia Atômica do Irã para, entre outros objetivos, treinar especialistas iranianos em parceria com países como Estados Unidos e Alemanha. Naturalmente, a cooperação foi interrompida com os acontecimentos políticos na virada daquela década.

Como signatário do Tratado de Não Proliferação Nuclear (TNP), o Irã tem o direito de enriquecer urânio desde que seja para fins civis. Neste sentido, o governo iraniano alega que o desenvolvimento da capacidade nuclear tem finalidade meramente pacífica, buscando atender demandas da medicina e questões ligadas à geração de energia elétrica. A princípio, causa estranheza que o país detentor da quarta maior reserva de petróleo e a segunda maior reserva de gás[2] no mundo precise desenvolver energia nuclear. Porém, não obstante os embargos ocidentais, a depleção estrutural das reservas de hidrocarbonetos e o boom demográfico dos últimos anos apontam para um déficit de energia no Irã nas próximas décadas.

A incerteza sobre suas reais intenções cresceram com a denúncia do grupo dissidente iraniano MeK, em 2002, sobre a existência de um programa nuclear clandestino no Irã voltado para o desenvolvimento de armas atômicas. Com a eleição de Ahmadinejad, que intensificou as críticas ao Ocidente, especialmente aos Estados Unidos e a Israel, a temática ganhou maior visibilidade no ano de 2005. Como forma de pressionar o governo em Teerã, entre 2006 e 2010, uma série de sanções comerciais, diplomáticas, econômicas e financeiras foi aprovada pelo Conselho de Segurança da ONU. As penalidades somaram-se às que haviam sido adotadas cumulativamente por sucessivas administrações em Washington, desde Jimmy Carter, em 1979.

Entre 2010 e 2012, já durante a administração Obama, medidas mais duras estabeleceram novas restrições, especialmente sobre o comércio de recursos de energia. O esforço visou debilitar a principal artéria econômica iraniana: exportação de petróleo. Tendo sido responsável por até 80% da receita total do governo iraniano, o comércio de petróleo e gás sofreu forte abalo com os embargos europeus resultantes da pressão dos Estados Unidos sobre os aliados. Mesmo grandes compradores na Ásia, como China, Coreia do Sul, Índia e Japão, procuraram reduzir suas compras de petróleo iraniano temendo retaliações no sistema financeiro dos Estados Unidos. A estratégia resultou na queda drástica das exportações líquidas de petróleo, que atingiram 1,8 milhões de barris por dia em setembro do ano passado, o nível mais baixo desde 1986.

Os impactos das sanções, particularmente das que se abatem sobre as transações financeiras internacionais, têm sido cada vez mais marcantes: as restrições criaram forte escassez de moeda, o que também afetou gravemente a economia iraniana. Além da redução de mais de 40% na receita com exportação de petróleo e gás, houve brusca queda nas reservas cambiais. Além disso, com a dificuldade de angariar fundos para o desenvolvimento da área de negócios, uma série de atividades ilegais ganhou força no Irã, especialmente envolvendo transferência de recursos para o exterior, e a contratação de cambistas e intermediários dispostos a driblar o ambiente de crise.

A retomada das negociações sobre a questão nuclear, portanto, está inserida neste contexto. Reacendidas pela eleição de um líder político moderado e marcadas pelo estrangulamento econômico do país, as mais recentes negociações produziram um pacto firmado no último dia 24 de novembro, pouco mais de um mês após o início formal dos debates.

As negociações e o acordo

Durante a primeira rodada de negociações, em Genebra, o chamado grupo P5+1 (em referência aos membros permanentes do Conselho de Segurança e à Alemanha) pressionou o Irã para que suas pesquisas nucleares fossem reduzidas. Apesar da onda de otimismo que cercou o encontro, no entanto, a conversa foi marcada por muitas divergências.

Mais tarde, ao longo da segunda rodada, as negociações também terminaram sem acordo, já que a França bloqueou uma medida provisória que previa concessões das duas partes. Na ocasião, influenciadas pelo ministro das Relações Exteriores da França, Laurent Fabius, as potências ocidentais afirmaram que era necessário esclarecer algumas questões sobre a construção do reator de água pesada na usina de Arak e sobre o destino do estoque de urânio enriquecido a 20%. O reator a água pesada utiliza urânio não enriquecido, o que permitiria ao Irã escapar da supervisão internacional e, eventualmente, evoluir para o uso de plutônio.

Semanas depois, a terceira e última rodada de negociações foi responsável por finalmente estabelecer um acordo provisório que deve vigorar pelos próximos seis meses. Por meio deste pacto, o Irã concordou em limitar o enriquecimento de urânio em 5% (índice suficiente para a produção de energia elétrica e insuficiente para produzir armamentos) e diluir para esse mesmo nível a metade do estoque atual de urânio enriquecido a 20%. O restante será transformado em óxido de urânio, elemento que pode ser usado como combustível nuclear, mas não reconvertido em urânio enriquecido. As instalações de Natanz, Fordo e Arak terão suas atividades temporariamente interrompidas. O Irã também garante que não vai reprocessar urânio, método que gera o plutônio para fins bélicos. Por último, o país aceita inspeções rígidas e frequentes pela Agência Internacional de Energia Atômica.

Em troca, parte das sanções internacionais será suspensa, como as que atingem exportações iranianas de metais preciosos, petroquímicos e automóveis, e importações de peças para a aviação civil. Essas concessões devem somar aproximadamente US$ 1,5 bilhão. O embargo ao petróleo não será aumentado e cerca de US$ 4 bilhões em ativos congelados no exterior serão liberados. As medidas paliativas não representam uma solução definitiva para a delicada situação econômica do país, que já teria perdido mais de US$ 120 bilhões com o boicote financeiro, securitário e comercial desde 2010. Por fim, o P5+1 concordou em não aprovar novas sanções durante a vigência do acordo provisório, seja no âmbito multilateral ou nacional.

O atual pacto deixa alguns pontos em aberto, a exemplo do desmantelamento das instalações já existentes no Irã, conforme exige Israel. Tampouco foi claro sobre o reconhecimento pelas potências do direito iraniano de desenvolver um programa nuclear para fins pacíficos, em conformidade com o TNP. Embora a ambiguidade do documento sugira que essa condição constará de um arranjo futuro, Kerry negou qualquer anuência nesse sentido. Deste modo, espera-se que, ao final dos próximos seis meses e no prazo máximo de um ano, seja possível formalizar um acordo completo e definitivo, o que nas palavras do secretário “vai exigir um grande trabalho em termos de verificação, de transparência e de responsabilidade”.

De modo geral, ao mesmo tempo em que o histórico recente das relações bilaterais entre o Irã e os Estados Unidos denote maior inclinação dos governos no sentido de defender o diálogo, também fica clara a preferência por parte dos Estados Unidos por uma espécie de estratégia política de “duas vias” baseada, quem sabe, no conceito de “smart power”: intensificar as sanções significou sufocar o Irã para depois criar espaço para a diplomacia. Isso porque a alternativa permanente de confronto levaria, possivelmente, a um enfrentamento militar (inclusive pela pressão de Israel), no momento em que o governo Obama não deseja envolvimento em quaisquer conflitos que possam aprofundar as crises domésticas de natureza econômica e política.

Ainda de uma perspectiva estratégica, dizem os especialistas que o cálculo imediato incluiria retardar a capacidade de ataque nuclear do Irã, atualmente estimada em um mês. Em outras palavras, um dos objetivos do acordo seria fazer com que o país gastasse meses para aprontar ogivas nucleares, caso decidisse por uma ação militar assertiva, e o Ocidente tivesse mais tempo para uma reação preventiva.

Condicionantes internas e externas

Afora o fato de que as sanções tenham funcionado, é importante sublinhar que outros fatores estratégicos contribuíram para que os Estados Unidos investissem na via diplomática. Haja vista a importância do Irã na Síria e no Iraque, onde sunitas desafiam, respectivamente, um governo pró-xiita e xiita.  É sabido que a solução para a guerra civil síria depende de se trazer o Irã para o debate, enquanto a estabilidade no Iraque não será alcançada contra a vontade iraniana. Outro exemplo é o Afeganistão, onde a estabilidade pós-2014 depende parcialmente da influência iraniana sobre grupos domésticos e como contraponto a ambições de potências regionais.

Do ponto de vista da energia, destaca-se o fato de aliados e rivais pressionar pelo fim do embargo ao petróleo iraniano. Diante da estreita oferta de recursos de energia no mundo e ao fato de o mercado de petróleo ser muito globalizado, estrangular o fornecimento iraniano torna-se uma faca com dois gumes. Por um lado, atende aos interesses estratégicos dos Estados Unidos e de alguns de seus aliados; por outro, pressiona o preço do barril em caso de aumento da demanda mundial. Vale lembrar que nem mesmo a abundância de oferta de recursos de xisto nos Estados Unidos consegue suprir a ausência iraniana para o abastecimento de regiões nevrálgicas, como Europa e Ásia.

Igualmente, há que se considerar a existência de lobbies, inclusive de empresas ocidentais, a favor do diálogo. A pressão corporativa é particularmente forte entre instituições bancárias e seguradoras de frete internacional.

Embora os avanços nos últimos meses tenham sido notáveis e as perspectivas positivas para o relacionamento entre os dois países, ainda é importante analisar estes movimentos com certa cautela. É verdade que a aproximação para discutir a questão nuclear foi responsável por romper um ciclo de mais de trinta anos de afastamento; apesar disso, não se deve perder de vista o fato de que o acordo estabelecido entre as partes é, ainda, interino e com nuances complexas inexploradas.

No cenário atual, a incerteza envolve não só as forças partidárias do governo iraniano, mas a própria longevidade do apoio oferecido ao presidente Rouhani pelo aiatolá e líder supremo do sistema teocrático, Ali Khamenei. Da mesma forma, é importante observar o simbolismo do programa nuclear no imaginário da população iraniana, que o relaciona a autonomia e anti-imperialismo.

Do lado de Obama, será difícil convencer o Congresso e outras forças políticas a aceitar os termos de uma aproximação efetiva. Como é amplamente sabido, o lobby israelense exerce significativa capacidade de mobilização nos Estados Unidos. Entre as diversas instituições em que atua, destaca-se o Comitê Americano de Assuntos Públicos de Israel (AIPAC, na sigla em inglês), que já publicou em seu próprio site que “continua a apoiar a ação do Congresso para aprovar uma legislação que reforce as sanções contra o Irã”. Este grupo conta com o apoio bipartidário de representantes, que já haviam aprovado, em julho, novas restrições contra o Irã.

A proposta da Câmara aguarda apreciação no Senado, onde a maioria democrata é a principal beneficiária das contribuições de campanhas feita por grupos pró-Israel. O próprio líder da maioria na Casa e um dos apoiadores de Obama, senador Harry Reid (D-NV), é simpatizante de novas penalidades. Embora o Comitê Bancário, de Habitação e Assuntos Urbanos do Senado, sob a pressão de Kerry, tenha concordado em pausar a análise da proposta a fim de não prejudicar o andamento das negociações em Genebra, o órgão já indicou que pretende retomar o projeto de lei nas próximas semanas. O maior problema para a Casa Branca não chega a ser a aprovação de novas sanções, uma vez que o presidente tem a prerrogativa de não aplicá-las; o desafio está justamente em preservar esse poder discricionário para o Executivo.

Do ponto de vista internacional, as reações à aproximação bilateral demonstram a preocupação dos países aliados, particularmente de Arábia Saudita e Israel. No primeiro caso, Riad recusou-se a emitir um pronunciamento oficial sobre o estreitamento de laços entre Estados Unidos e Irã. Entretanto, o fato apenas agrava a frustração da Arábia Saudita com o que considera uma série de hesitações e equívocos da Casa Branca no Oriente Médio. No segundo caso, a divulgação do pacto nuclear na última semana foi recebida com forte rejeição, com o primeiro-ministro Benjamin Netanyahu classificando o acordo como um “erro histórico”. Autoridades israelenses, como a ministra da Justiça Tzipi Livni, já aventam a hipótese de uma aliança anti-Irã com a Arábia Saudita.

De modo geral, também é importante considerar a desconfiança mútua como fator central que faz parte da narrativa histórica das relações Irã-Estados Unidos. Estes promoveram o golpe contra o primeiro-ministro nacionalista, Mohammed Mossadegh, em 1953, e apoiaram Reza Pahlavi até 1979, quando eclodiu a Revolução Iraniana. O regime em Teerã acusa Washington e Tel Aviv de assassinar cientistas nucleares iranianos, a exemplo da já comprovada execução dos ataques cibernéticos a centrais nucleares. Por outro lado, os Estados Unidos alegam que o Irã incentiva o terrorismo internacional, promove a instabilidade no Golfo Pérsico e ameaça Israel, seu principal aliado no Oriente Médio.

Com tantas barreiras a vencer, as chances de que a recente aproximação sofra um revés não é pequena. Parafraseando Obama, novos avanços são possíveis desde que os Estados Unidos estejam “conscientes de todos os desafios que se avizinham”. Em contrapartida, a oportunidade para que o presidente deixe um marco positivo em política externa é impar. Nesse caso, as consequências vão além do legado pessoal, possivelmente perpassando a reorganização da política regional no Oriente Médio e o rearranjo de alianças estratégicas.

 

[1] Em março de 2009, Obama transmitiu uma mensagem ao povo iraniano em comemoração por seu Ano Novo (o chamado Nowruz). Em junho, no famoso discurso proferido no Cairo, ele falou que “décadas de desconfiança” necessitavam de ações baseadas na “coragem, nas mudanças de atitude e na capacidade de resolução”. Repetiu, ainda, palavras semelhantes ao receber o prêmio Nobel da Paz, em outubro do mesmo ano. No romper de 2010, Obama enviou um novo cumprimento ao povo iraniano em função do Nowruz, dessa vez utilizando-se de um tom mais severo.

[2] Quando não indicado diferentemente, os dados quantitativos sobre energia são da Energy Information Administration.

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